segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

António Alçada Baptista 2

Estas minhas palavras tiraram à Matilde uma espécie de vergonha que eu sentia no corpo dela um pouco tenso, com pouco à vontade para se entregar porque o peito já não estava como era, a cara já tinha rugas e a perna mostrava já uma pequena variz. Ela disse:
- Tu és único. Esperava tudo menos dizeres-me que o meu corpo merecia mais ternura do que quando me conheceste!
- Exactamente isso. Quando é que nós estivemos nus com este à vontade, com a sensação subcutânea de termos, não digo um inimigo mas um adversário, um intruso, um outro que não se identificava inteiramente connosco? As relações de sexo podem ser vividas enquanto somos novos, mas os encontros de amor exigem esta maturidade, quase a ausência do desejo. Gosto de estar aqui contigo, fazer festas no teu corpo já cheio de tempo, apetece-me beijar-te porque estou a beijar a tua história pessoal, aquilo que viveste, as tuas alegrias e as tuas dores. É nestas coisas que sinto que envelhecer é uma arte e que o amor só se vive plenamente quando o desejo já não comanda o nosso encontro mas sim aquilo que somos e a qualidade da nossa relação. Quando casei tu eras nova, mas nunca consegui estar contigo como estou agora.

"O Tecido do Outono", António Alçada Baptista

(António Alçada Baptista nasceu no dia 29 de Janeiro de 1927. Morreu em 2008.)

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