quinta-feira, 1 de outubro de 2015

José Cardoso Pires 3

- um dos quais, cão de fora e jamais identificado, foi aquele que chamou a atenção dum pescador local e o levou à descoberta do cadáver. Este cão parece que tinha sobrancelhas amarelas, que é coisa de rafeiro lusitano. Provavelmente andava à deriva pela costa e como tal deve ter pernoitado na zona dos banhistas que nesta época do ano se resume a algumas armações de ferro e pavilhões a hibernar.
Pelo terreno encontravam-se restos de férias, farrapos de jornais soterrados no areal, um sapato naufragado, embalagens perdidas; a bóia de socorros a náufragos sempre à vista, dia e noite; refugos de marés vivas; o conhecido cartaz
                                                    PORTUGAL,
                                           Europe's Best Kept Secret,
                                                      FLY TAP

crucificado num poste solitário. Foi neste verão fantasma que o cachorro em viagem se veio acolher.
Ao alvorecer seguiu jornada rumo ao norte, precisamente na direcção mais deserta, o que não se compreende tratando-se dum animal aos sobejos, a menos que algum fio de cheiro urgente o tivesse chamado de longe; e assim deve ter sido porque quando passou pelo pescador ia a trote direito e de focinho baixo a murmurar. Levava destino, isso se via. Logo adiante apressou o passo, entrou em corrida e perdeu-se nas dunas.
Porém não tardou a aparecer, desta vez esgalgado no cume das areias a uivar para os fumos que vinham do oceano. Isto, bem entendido, intrigou o pescador que pelo sim e pelo não se dirigiu às arribas, sem que o animal interrompesse um só instante o seu apelo ou o olhasse sequer. E o pescador subindo sempre foi-se chegando a ele e já muito próximo parou e viu:
Viu no fundo duma cova uma conspiração de cães à volta do cadáver dum homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu mas logo retomaram a presa; outros nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto.
Há aqui uma certa ironia, diz o inspector Otero da Polícia Judiciária. Segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães.


"Balada da Praia dos Cães", José Cardoso Pires

(José Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925. Morreu em 1998.)

Sem comentários:

Enviar um comentário