quarta-feira, 10 de junho de 2015

Toiros à corda na ilha Terceira 6

Capinha, e com muito gosto

Os capinhas, em pose inicial algo parecida com a do forcado da cara nas corridas à portuguesa, enfrentam o toiro, citam, provocam, correm-lhe ao encontro, ensaiam o "temple", "aguentam" ou, momento supremo, "adornam-se", tocando-lhe entre hastes. E raspam-se a mil à hora. Mas reincidem. Sempre pela frente. "Passar por detrás do rabo de um toiro é desconsideração, é uma falta de respeito ao animal", elucida-me um purista, velho aficionado. Compete aos capinhas "levantar" o toiro, fazê-lo dar o máximo ao espectáculo.
E aqui é que bate o ponto. Algumas más-línguas desconversam que estes espontâneos em full-time recebem dinheiro dos ganadeiros para fazerem brilhar especialmente os seus toiros ou, coisa medonha, são pagos por criadores terceiros para reduzirem ao fiasco a exibição dos animais da concorrência...
Maldades ditas do piorio. A pés ambos, José Henrique e Noé - dois dos quatro ou cinco capinhas sobreviventes em toda a ilha ("Há por aí uns rapazes a aprender") - juram que não, e que não, e que não: "Não há negócio nenhum, nem com os ganadeiros nem com as comissões de festas". Pois...
"É só por gosto, a gente gosta. Tourear toiros é bonito. Isto para mim é como o futebol, o meu verdadeiro futebol", explica-me José Henrique, na arte há onze anos e em vésperas de pendurar as sapatilhas.
José Henrique considera-se "um toureiro toureiro realizado", faz questão de frisar para os meus apontamentos. Toureiro toureiro, assim mesmo, não foi engano. "Já toureei  na América, toda a gente que vem aos toiros me conhece", acrescenta, com orgulho internacional. Passou pela escola de toureio da Praça de Angra do Heroísmo, mas "não tinha gosto nem vagar". Ainda assim não resiste a dar lá uns saltos, à Monumental, para expor a sua valentia, desafiando toiros "sem muleta, sem capa, de peito aberto".
Conta-me: "Uma vez, eu, o Ananias, o Dimas, o Magalhães e o Rosas lá estivemos. Eram toiros bem bravos, o 163 e o 164. Toureiros do Continente e de São Miguel nem lhes conseguiam chegar, e a gente ali, a ajudarmo-nos uns aos outros, a escorregarmos quando calhava, mas a fazermos ver àquele povo. É bonito é ir ao meio da praça e chamar o toiro com o guarda-sol"...
Note-se que raros capinhas se aventuram hoje em dia ao famigerado passe de guarda-sol, executado em duo: um, empunhando o guarda-sol propriamente dito, e o acólito ao lado, com a samarra nas mãos; um a servir de engodo ao toiro e o outro a rematar o número em beleza; ou vice-versa. São raros. E por via disso é que os mais antigos recordam com saudade e emoção as grandes tardes do Prosa, exímio executante daquela arte.

(Sexta parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)

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