Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe, seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz ideia. Onde isso vai, parece que não, os dias passam devagar, mas os anos vão-se depressa. A gente só dá por isso quando já não há remédio.
Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças da chuva, travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo, num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as "terras", lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia "reinar", e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um. O mundo acabava-se ali no redondel da praça: um muro decrépito e, para além dele, era a poesia, o silêncio, o bucolismo e a Perna-de-Pau. As noites uma paz. A brisa trazia lá de cima um cheiro fresco de húmus, de estrumes, de águas e verduras. As meninas pensativas, cheias de Júlio Dinis e pescadinha frita, dedilhavam pianos langues, aguitarrados, com as janelas escancaradas, ou então escutavam pelas sacadas, em roupas leves, a voz dos Tenórios empregados em escritórios, gemendo o Fado nas ruas:
Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças da chuva, travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo, num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as "terras", lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia "reinar", e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um. O mundo acabava-se ali no redondel da praça: um muro decrépito e, para além dele, era a poesia, o silêncio, o bucolismo e a Perna-de-Pau. As noites uma paz. A brisa trazia lá de cima um cheiro fresco de húmus, de estrumes, de águas e verduras. As meninas pensativas, cheias de Júlio Dinis e pescadinha frita, dedilhavam pianos langues, aguitarrados, com as janelas escancaradas, ou então escutavam pelas sacadas, em roupas leves, a voz dos Tenórios empregados em escritórios, gemendo o Fado nas ruas:
Ó pálida madrugada,
já tenho saudades tuas...
O luar encharcava a noite, entrava em cascata pelas janelas, vinha ter connosco à cama. As luzes eram raras e mortiças, de gás incandescente. Pairava no ar um resto de Cesário, e muito José Duro e amargo. Noite morta, pelas dez, passava o varino dos jornais, descalço, anelante da maratona em que vinha desde a Baixa, apregoando A Capital - e a voz dele tinha um tal desgarramento de mundo perdido, que eu, na minha cama fria de impúbere, a seguir-lhe em mente os passos, sentia um aperto na garganta e uma irresistível vontade de chorar.
"Saudades para a Dona Genciana", em "Léah e Outras Histórias", José Rodrigues Miguéis
(José Rodrigues Miguéis nasceu no dia 9 de Dezembro de 1901. Morreu em 1980.)
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