terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Párias de cartão passado

Foto Hernâni Von Doellinger

O novo Governo é uma boa alma. Quer ajudar os pobres. E porque gosta muito de ajudar, é preciso que os pobres continuem pobres, se possível ainda mais pobres, e que peçam a esmolinha, e que digam muito obrigado, e que dêem graças a Deus.

O mesmo Governo que se prepara para cortar a direito nos direitos sociais dos mais desfavorecidos e nos direitos adquiridos e fundamentais dos trabalhadores e dos trabalhadores em situação de desemprego, esse mesmo Governo – o Governo de Passos Coelho e de Paulo Portas – proclama, de mãos postas e cabeça levemente inclinada, que a sua prioridade é dar às famílias "alimentação, vestuário e medicamentos".
Quer-se dizer: roubam-nos o que é nosso e depois devolvem-no-lo, já usado e gasto, em suaves prestações de caridade. Uma mão lava a outra? Não. Uma mão não lava a outra, entendamo-nos. É hipocrisia pura e simples, política de enganadores, filhadaputismo da pior espécie.
Não sei, ainda não se sabe, como vai ser distribuído este bodo aos pobres. Mas uma coisa o Governo PSD/CDS tem como certa: o País precisa de se organizar. Há que actualizar os ficheiros, é preciso identificar e cadastrar os verdadeiros pobres, os que vão ter direito à coisa, para que não haja misturas, para acabar de vez com os aproveitadores. Cada macaco no seu galho.
Aviso ao público: boa ideia será trazer sempre no bolso o atestado de pobreza. As autoridades podem aparecer a qualquer momento, em qualquer esquina. Os novos párias devem legalizar-se, serão párias de cartão passado.
Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola – da Escola Primária – que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo – no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres –, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira, em Fafe.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco. O novo Governo deverá copiar daqui para os dias de hoje: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço ao Governo de Passos Coelho e Paulo Portas que, quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes. É que as noites estão cada vez mais frias.

(Texto escrito e publicado no dia 29 de Junho de 2011. Como se fosse hoje. Apenas com uma pequena diferença: as famílias têm ainda menos que comer e vestir e deixaram de tomar remédios.)

4 comentários:

  1. É chegado pois o tempo da Esquerda ter a ambição de, além da rua, chegar ao Governo.Não um bloco de esquerda, mas o bloco da esquerda. Aparentemente, parece simples: basta apagar ressentimentos, pequenas traições antigas,e as grandes alamedas serão nossas.

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  2. Caro Francisco D. Mangas,
    Diz V. Ex.ª muito bem: "Aparentemente, parece simples". E será?
    Sempre a considerá-lo,
    Neques

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  3. A esquerda é como o monstro do Loch Ness. Temos a certeza absoluta de que existe, mas ninguém lhe põe o olho em cima. Mas também admito a tese de que a Esquerda estará enterrada, algures na Rússia, sob neve, gelo e lama.
    M.

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  4. Um desabafo, apenas. Tantos anos passados sobre o 25 de Abril, é tempo de alguém ter a coragem de acabar com a discriminatória regra da prioridade à direita.
    M.

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