Não era por seu gosto que o funeral se encaminhava para o cemitério de Aldebarã. Nem todos os mortos merecem a mesma sepultura, essa é que é a verdade, por muito
que doa aos vivos. Na morte não somos não, não somos todos iguais. Nem sequer perante Deus, tinha a certeza. Se Deus não dorme...
A terra daquele cemitério era sua, como a aldeia e tudo o que lhe ficava à volta. E ali era ele quem mandava, não precisara de o lembrar à filha. Já marcara o lugar
para o genro - seria metido num dos jazigos da família, no dos aparentados ao pé das mulheres, das crianças e dos homens; de certos homens que disso pouco mais tinham
do que o corpo. De cova aberta no chão, bem funda, só os que davam à terra o que ela merecia. Tradição herdada do avô, não seria ele quem iria traí-la, porque ali
estava, sozinho podia dizê-lo, desde os quinze anos, de dentes cerrados e corpo jogado para diante na mesma luta sem quartel.
Sabia que lhe cumpria vencer; não desconhecia os inimigos, mas sentia os pés firmes no chão que pisava. Tinha de os pôr firmes, bem assentes: Ah! sim, abdicara de
muita coisa que um jovem pode desejar quando lhe levam o pão à boca! Arcara com horas terríveis e amargas, bebera muitas lágrimas, sem deixar verter uma só, desde
o dia em que o pai entrara ao portão da quinta, pronto a morrer, às costas do Manel Fandango, sem queixa que se lhe ouvisse do corpo esfrangalhado.
Matara-o uma égua de pêlo-rato, desenfreada, ao atirar com ele de encontro a uma oliveira, na fúria dum galope. Exactamente em Janeiro, a 13 de Janeiro, às cinco
e vinte e cinco da tarde.
Há vinte e nove anos que era ele, pois, o chefe da casa. E, enquanto assim fosse, naquele talhão mais alto do cemitério, donde se viam chãs aleziriadas e a veia
do Tejo, só entrariam patrões e criados, sem distinção de coval, quando o quinhão oferecido por eles à terra merecesse que esta os guardasse. Esses, sim, ficariam
todos iguais na morte, quase de ombro com ombro no sossego eterno, em campa rasa. Menos de um palmo de terra a marcar, em lomba, a linha do esquife, uma cruz de
madeira, uma legenda simples, mais aprimorada para o servo afeiçoado do que para o senhor. E os vivos que lhe dessem améns no coração.
"Essa é a única e boa maneira de o homem se alongar para além da morte", concluía Diogo Relvas, sempre que alguém lhe falava do panteão da casa.
Agora caminhava logo atrás da urna com o corpo de Rui Portela Araújo, seu genro. Seguia-a de cabeça erguida, quase arrogante, como se buscasse no céu, lá longe,
algum sinal desejado para adivinhar o que se seguiria àquela semana trágica.
A corrida ao dinheiro prosseguia, alucinada. Lutava-se, a murro, por moedas de oiro à porta dos banqueiros ou por um lugar nas bichas das tesourarias. Todos queriam
receber e ninguém pensava em pagar. Num golpe de melodrama, o Freitas dos Cereais - quem não conhecia o Freitinhas? - metera uma bala na cabeça, à porta do gabinete
do director de certo banco que lhe recusara o pagamento dum cheque, por falta de numerário na caixa despejada. Fraco de sangue, embora até ali sobranceiro por causa
dos seus interesses nos caminhos-de-ferro e na finança, o genro viera morrer-lhe a casa, numa fuga espantada, quando os depositantes fizeram a primeira corrida à
caixa do banco de que era director e accionista. Graças a Deus, duas vezes graças, por ter exigido separação de bens em troca do consentimento para que a Emília
Adelaide casasse aos dezassete anos. E agora aos vinte era viúva, uma menina ainda. Que mais lhe estaria guardado com dois filhos nascidos e outro no ventre? Poderia
ele protegê-los?! Não diria dos azares da
fortuna, mas das baldas de sangue dos Araújos, valdevinos e soberbos.
Era nisso que pensava agora.
"Barranco de Cegos", Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em 1969.)
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