Fora bem reles a existência até aquela data - a data da carta - digna de ser marcada com uma pedra branca, como se marcam os dias felizes da vida, segundo ouvira ao professor Aníbal ao jantar de casamento do infeliz Joaquim Feliciano. Pai não conhecera, fora-lhe mãe uma lavadeira, tristemente ligada a um sargento do corpo policial de Manaus, desordeiro e bêbado. Macário crescera entre os repelões da mãe e as sovas formidáveis com que o mimoseava o sargento para se vingar do marinheiro da taverna, farto de lhe fiar a pinga. Poucas vezes conseguira satisfazer a fome, senão graças à generosidade de algum freguês em cuja casa entrava a serviço de condução da roupa lavada; porque na casinha da lavadeira o pirarucu era pouco e mau, a farinha rara, os frutos luxo dos ricos, o pão extravagância de fidalgos de apetite gasto ou de doutores barrigudos e vadios. O estômago do rapaz era exigente, afeiçoara-se facilmente às gulodices das casas abastadas, onde entrava de cesto à cabeça, lançando compridos olhos para a mesa de jantar ou para o armário dos doces, até a senhora, entre um credo! e duas cruzes! tinhoso! lhe mandar dar alguma coisa, para que não aguasse a comida. O duplo tormento da fome e das pancadas exasperava o Macário, mas, à falta de energia, não lhe dava mais remédios do que suspiros, gritos e lágrimas. A sua devota Nossa Senhora do Carmo veio, porém, em seu auxílio.
Uma tarde, a mãe, ocupada em conter os ímpetos destruidores do amante, fatais à louça e à mobília, mandara-o levar um cesto de roupa lavada ao Seminário, e cobrar a conta do senhor reitor.
Nesse dia, a bebedeira do sargento ameaçara trovoada grossa, e ao jantar das duas horas faltara a farinha d’água, e o pirarucu fora comido triste e só, sem gosto e às carreiras.
Macário, faminto e assustado, batera à porta do Seminário, uma grande casa séria e limpa, cheia de janelas com vidraças e de meninos alegres, brincando o esconde-esconde no vasto quintal inculto; e esse espetáculo aumentara-lhe a tristeza, ao ponto de o fazer chorar.
Macário, faminto e assustado, batera à porta do Seminário, uma grande casa séria e limpa, cheia de janelas com vidraças e de meninos alegres, brincando o esconde-esconde no vasto quintal inculto; e esse espetáculo aumentara-lhe a tristeza, ao ponto de o fazer chorar.
"O Missionário", Inglês de Sousa
(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)
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