segunda-feira, 6 de maio de 2013

Luiz Pacheco

Tenho pena, ah como eu tenho pena!... dos que precisam de inventar coragem para um novo dia, certezas certezinhas, obediência a religião ou partido ou rotinas, de inventar-se comodidades necessidades ou ilusórias vaidades de levar melhor vidinha (ceguetas todos eles aos limites da humana criatura que é para todos e de repente o coveiro), razões para estar e lutar além destas, tão simples afinal e misteriosas sempre, tão naturais e primitivas: uma rapariga nossa que amamenta o filho, duas crianças que pedem pão e olham para ti.

Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos, lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o vómito; fui até às entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente variada nesta Viagem. Pobre gente: estúpidos de medo, doidos espertalhões, toscos patarecos, foliões e parasitas da Vida, parasitas (os mais criminosos, estes) chulos do próprio talento desperdiçando tudo: as horas do relógio deles e dos outros, e os defeitos de todos, que tudo tem seu calor e seu exemplo; ou frustrados falhados tentando arrastar os mais para o poço onde se deixaram cair por impotência de criar, lazeira ou cobardia (mas o coveiro nada perdoa). Cadáveres adiados fedorentos viciosos de manhas e muito mal mascarados. Uma caca a respirar.

"Comunidade", Luiz Pacheco

(Luiz Pacheco nasceu no dia 7 de Maio de 1925. Morreu em 2008.)

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