Os idiotas confessos
[...]
E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos "melhores". Só os "melhores", repito, só os "melhores" ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.
Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos "melhores", só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.
Vejam bem: - o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os "melhores" podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: - "Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido." Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.
De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: - a vergonhosa inferioridade numérica dos "melhores". Para um "génio", 800 mil, um milhão, dois milhões, três milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: - trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em 15 minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.
[...]
"O Homem Fatal", Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)
Sem comentários:
Enviar um comentário