quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Afrânio Peixoto 3

Quando, às cinco e meia, ia entrando na Lalet, saíam José e Stela, que me fizeram a acolhida amável de sempre.
- Chegou tarde, disse ela, para assistir a uma cena de romance, não dos que você imagina, mas dos que a vida improvisa. Olhe, o seu amigo ainda está comovido...
De facto, José estava pálido e o gesto ainda trémulo.
- Pois vamos tornar a tomar chá, e vocês me contarão...
Não aceitaram. Tomaram um carro e me meteram dentro dele. Tive de ouvir a história, em vez de meu chá. O romancista é um
repórter sentimental.

... Estavam tranquilamente, entre chávenas e torradas, sentados a uma mesa próxima, onde se achava só um cavalheiro, quando se acercaram duas senhoras. Notaram que, apesar das maneiras e compostura de gentleman, ele não se levantara, à recepção, e apenas indicara, às recém-vindas, duas cadeiras próximas.
Uma delas, mais moça, quase bonita, abriu a bolsa e tirou um papel, desdobrando-o, como lhe mostrando a letra, ou assinatura. O sujeito meteu a mão à carteira e daí tirou também um papel. Trocaram os dois papéis e a senhora imediatamente rasgou o que recebera, em pedacinhos, que encerrou depois na sua bolsa. Isto feito, chamou a atenção do cavalheiro, que lhes vai ao encalço e, no corredor central, à altura da balaustrada, atingindo-as, com a mão aberta aplica, à que lhe falara, o castigo infame e bárbaro de, umas sobre as outras, bofetadas... Ela as recebe todas, sem gritos, sem reação, apenas mais apressada, até à porta, concertando o cabelo e o chapéu, e ganhando finalmente a rua. A outra mulher, dama de companhia talvez, limitou-se apenas a agarrar a mão da companheira, para ganharem um veículo. O homem deteve-se à porta, e volvendo, encontrou já próximos, numa espectativa de agressão, vários homens, até José, que só não interviera pela rapidez da cena e inermidade da ofendida, que apressara o seu castigo, não reagindo a ele.
- Imagine, interrompeu Stela, se o homem está armado e investe contra os que o cercaram. José estava na frente...
- Amanhã os jornais diriam que um marido enganado, depois de castigar a esposa, lhe havia alvejado o amante, e estava o José
classé D. Juan...

Após um meio sorriso sem graça, o "ex-futuro Don Juan" continuou:
- Cada qual, sem palavras, em alguns segundos, recuou para o seu lugar; o combate cessara, por falta de combatentes; não iríamos protestar agora, se a interessada recebera sem protesto; mas o pseudo
gentleman leu em todas as faces a mesma reprovação tácita... "Bárbaro! Numa mulher não se bate, nem com uma flor!"

 [...]

Afrânio Peixoto

(Afrânio Peixoto nasceu no dia 17 de Dezembro de 1876. Morreu em 1947.) 

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