- Essa ceia está pronta? - perguntou enfastiado o Serafim, cuja figura esgalgada e curva, tendo
vencido o último degrau da escada, assomava oscilando à porta da cozinha.
- Há que tempos! - respondeu-lhe, sem o olhar,
uma mulherita atarracada e bruna, que no vão da
chaminé, à esquerda da porta, mesmo junto à esquina, de candeia suspensa da mão esquerda mexia
um tacho de barro fumando sobre e fogareiro.
- Bem... vamos então a aviar! - comandou o
operário, numa leve impaciência, atirando o corpo
descadeirado e longo para cima dum mocho de pinho, de encontro à mesa, do outro lado da porta de
entrada, e projectando o chapéu com arremesso.
- É pra já! - acudiu de salto a mulher, enquanto lhe vinha perto pendurar a candeia, dum
grande prego enferrujado. A seguir, foi à chaminé,
tornou, e fitando agora firme o Serafim, inquiria, com
um significativo ar, quando na frente lhe punha, sobre a gorduragem gretada das tábuas ressequidas, o
tacho fumegante: - Vens-lhe com gana hoje?...
- Mas gana de quê?... - logo repontou o Serafim, enviesando malevolamente os olhos.
- Ora de que há-de ser?... De tasquinhar. E ainda bem!
Dizendo, a ladina da Clara rodopiava ligeira na
acanhado aposento, descendo do armário e dispondo
na mesa dois pratos de barro, singelamente vidrados
a branco e sua franja de azul nos bordos, depois colheres e garfos de chumbo, pão, um pires esbeiçado
com azeitonas. E então, com o mesmo ar finório, as
costas da mão sobre a mesa:
- A não ser que tu... sim... lá tenhas outro sentido. - A cara patibular do Serafim torcia-se num
sorrisinho implicante. E a mulher a insistir: - Não
sei o que te acho! Estás-me assim a modo campeiro...
- E tu estás muito doutora...
- Cada um é como Deus o fez...
- Senta-te! - gritou com ímpeto o Serafim, fuzilando-lhe um relâmpago de cólera na abaçanada
frouxidão dos olhos. E arrastou ainda, numa sorna
de ameaça: - Nós temos festa... - Depois imperiosamente a repetir: - Então!?
Ao que a mulherita prontamente obedeceu, trazendo cadeira para junto do seu homem, e dando-lhe
ao sentar-se um amorável repelão no braço: - Mostrengo!
Mas, insensível, o Serafim lançava do tacho para
o prato e sorvia automaticamente, sem vontade, sem
prazer, uma negra e triste aguadilha, mosqueada de
olhitos de azeite, condensando na frialdade do ambiente um vapor nauseabundo, e de cuja dessorada
fluidez a quando e quando emergia a ironia cortical dum feijão, ou a coriácea insipidez dalguma couve saloia. De sua banda a Clara imitava-o, atacando
também, mas de longe, como quem se despacha
duma fastidiosa obrigação, o sujo tacho requeimado;
e para isto estendia o braço direito, todo longo, e sobre o antebraço esquerdo em repouso tinha o avental colhido no regaço.
"Amanhã", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
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