sábado, 6 de maio de 2023

Era Bouças e fez-se Matosinhos

Matosinhos cheira mal. Faz parte. E aos sábados e domingos mete nojo. Num dia como o de hoje, isto é, dia 6 de Maio, mas de 1909, o velho concelho de Bouças passou a chamar-se Matosinhos e pode portanto dizer-se que Matosinhos faz hoje anos, siga a rusga, siga a rusga, siga a nossa reinação. Os restaurantes de peixe rebentam pelas costuras e pelas esplanadas, e isso é bom para o IVA, mas fedem e fumegam num alucinante aviso de como será decerto o fim do mundo de um modo geral. Aos sábados e domingos, Matosinhos cheira a sardinhas mal descongeladas e a grelhas que não vêem água desde a grande seca de 1948. Cheira também a lixo deitado alegremente à rua sem norma nem excepção. Cheira também aos escapes bronquíticos dos incendiários autocarros da Resende. Quer-se dizer: Matosinhos cheira mal, fede ao natural e ao gasóleo, tresanda a Matosinhos.
Com vista para o mar se me puser de lado, moro há mais de trinta anos ao dobrar da esquina da restaurantíssima e concorridíssima Rua Heróis de França, no epicentro exacto dos vapores e malinas gastronómicas matosinhenses. Por estes dias a Rua Heróis de França está praticamente impraticável, pelo menos desde Tomás Ribeiro até às funduras da Lota, mas suponho que depois da Lota continua. Ecopontos e contentores tresandam perigosamente, mesmo à distância: nauseabundam a comida estragada, a peixe podre, a vomitado, a fermentado, a ranço, a lavadura para porcos, a ácido, a tóxico, a bagaço, a estrume, a bosta. Matosinhos World’s Best Fish, iniciativa da Câmara Municipal para inglês ver, só pode ser um equívoco, uma piada. E o fedor corre pela rua e entranha-se nas casas e nas roupas. Nos pulmões.
O Senhor Varredor que se ocupava de Heróis de França e fazia um trabalho impecável, e com quem eu dava, sempre que podíamos, dois dedos de conversa, pediu-me uma vez que eu fosse deitando os olhos ali às redondezas dos ecopontos novinhos em folha, porque se calhar um dia qualquer lá estaria ele estendido ao comprido, evidentemente gaseado por aquele fedor que não se aguenta, e muito grato ficaria se eu chamasse o INEM...

Moro em Matosinhos e gosto de pensar que também sou de Matosinhos. Moro à beira-mar. E como eu gosto do mar! Levei com o fedor da fábrica da tripa, habituei-me ao chulé da estilha e gramo com os saralhotos de cão que abrilhantam metro sim metro não os passeios da cidade. Gosto do sítio onde moro e gosto das pessoas a quem digo e que me dizem bom-dia, todos os dias, na lota, na peixaria, na padaria, no mercado, na praia, no passeio marginal, nas portas dos cafés e lojas. Gosto dos pescadores, gosto das peixeiras, gosto do peixe fresco que me vendem por especial atenção, gosto da franqueza e da valentia deste povo, gosto do cheiro da sardinha assada que me entra pela casa dentro nem que eu não queira, gosto das esplanadas que no Verão estorvam ruas e pessoas e quem estiver mal que se mude, gosto do Leixões e gosto dos leixonenses apesar de eles odiarem visceralmente o meu FC Porto.
No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, incomoda os vizinhos, aliás condóminos, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda faz-me falta tal qual está.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. O meu castelo. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, do alecrim, da salsa e do tomilho, e até tenho um loureiro e um carvalho, gostava de fumar a minha cachimbada e de beber o meu CRF "em balão previamente aquecido", que já não fumo e bissextamente bebo, gosto de ver passar navios. Condenaram-me a isso há uns anos, a ver navios, mas eu gosto. Sou um gajo cheio de sorte.
Estão a ver a cabeça daquele cromo assamarrado e de chapéu enfiado até às orelhas, sentado na varanda, ignorante da chuva e do frio, de braço de fora e olhando o mar? A cabeça é minha, o cromo sou eu. Não podem ver, mas tenho uma manta a agasalhar-me as pernas. Estou muito bem, não se preocupem. E estão a ver a gaivota belíssima, empoleirada no parapeito e quase em cima de mim? Ela não me larga. A gaivota também sabe que ali é santuário, lugar de pensamento e liberdade. Somos cúmplices, almas gémeas praticamente. Mas a gaivota abusa, caga na varanda e borra a roupa do estendal, o que enfurece sobremaneira a minha mulher, quase tanto como a cinza de cigarro da vizinha de cima. Eu, no que me diz respeito, tomo nota de mais um barco que entra no Porto de Leixões.

Claro que Matosinhos não tem o melhor peixe do mundo, como reclama a autarquia. Tem um peixe honestinho, com que me vou regalando cá em casa, e não é peixe de restaurante. É outro peixe, de que a publicidade não sabe, e ainda bem para mim. Por outro lado, Matosinhos terá provavelmente o melhor pior fedor do mundo. Entre o peixinho e o fedor, às tantas nem me queixo. Na verdade, confesso, gosto de Matosinhos assim.

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