Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é
apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas
de pele e osso. O jornal Público anunciava no tempo da troika e de Pedro
Passos Coelho: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away
em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escrevia e escreve
em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria
existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez
direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é
porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.
Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem
percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo,
amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante,
porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E
a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda
está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da
nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E
do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os
pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos
batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por
alma de quem lá tem". Porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que
eles.
Sei muito bem como tudo isto já funcionou em
Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os
bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com
a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A
diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença
entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que
escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre
os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que
levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz
e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam
lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha
para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente:
a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se
misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os
pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma
espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali
servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira, em Fafe.
Para
terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha,
que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco
feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo
de Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um
carimbo na
testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do
Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro
que já então - no antes do 25 de Abril de 1974 que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse
vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar
fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito
muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade
copulativa. E só peço que,
quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de
"alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar
também os caixotes de cartão. É que as noites estão cada vez mais frescas.
P.S. - Publicado originalmente, versão curta, no dia 16 de Fevereiro de 2012, sob o título "Os pobres". Hoje, 20 de Dezembro, é Dia Internacional da Solidariedade
Humana. Vem mesmo a calhar: estamos em cima do Natal e precisamos de nos
lembrar dos pobrezinhos, coitadinhos...
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