domingo, 1 de março de 2020

Protecção Civil, ao menos uma vez em cada ano

Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. Quer-se dizer: não havia Protecção Civil. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel. Ou por outra: o SIRESP vinha de motorizada. Ou por outra: o SIRESP era a motorizada.

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. É uma questão de orgulho macho. E então arrebitam e continuam a arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente, porque a CMTV é do ramo do sarrabulho e do fumeiro - disso vive, em lume brando. Os oficiais da Protecção Civil, doutores da mula ruça porém pessoas muito honradas e de boina, que antes deste rico emprego nunca tinham posto os pés num incêndio, tiraram um curso relâmpago de Teatro de Operações, Forças no Terreno, Frentes Activas, Meios Aéreos & Pontos de Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às autoridades a meio da tarde. Os oficiais da Protecção Civil e os políticos que os pariram inventaram um novo dicionário, especializaram-se em semântica, graduaram-se em eufemística e falam muito do que sabem nada. São profissionais do simulacro...
(Minúsculo esclarecimento, provavelmente desnecessário para o cidadão comum: Teatro de Operações, vulgo TO.)
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha. E negociatas familiares e desvios de dinheiro e kits e golas inflamáveis e outras tolérias e muita pouca-vergonha, honra é que não.

Os incêndios por combustão espontânea acontecem, mas, ao contrário do que o próprio nome indica, às vezes dão algum trabalho a organizar. Lembram-se ou já ouviram falar das populares manifestações espontâneas de apoio ao Senhor Presidente do Conselho no tempo de Salazar? Manifestações espontâneas, exactamente. Imaginam o que esse teatro a preto e branco implicava de preparação e logística, de aluguer de camionetas e distribuição de letreiros a bem da Nação, de farnéis e garrafões de vinho a encomendar, de reuniões nos grémios e nas corporações, de noites sem dormir por parte de presidentes de junta, regedores, párocos fascistas, presidentes de câmara, governadores civis, comandantes locais da Legião Portuguesa e dos Bombeiros, chefes da Polícia e sargentos da Guarda, bufos da Pide, patrões da indústria e caciques de outras marcas?
Pois com os incêndios é o mesmo. Para que aconteçam espontaneamente, e acontecem, é regra geral preciso que alguém acenda um fósforo. E é então que entra a Protecção Civil, que são os mesmos senhores do parágrafo anterior, isto é, os mesmos senhores da outra senhora, mas com nomes diferentes e fardas novas.

P.S. - Hoje, 1 de Março, é Dia Mundial da Protecção Civil. Por favor, não incomodar!

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