Era uma água represada (que correnteza, quanto desassossego!)
que jorrava daquela imaginação adolescente ansiosa por dissipar sua
poesia e seu lirismo,era talvez a minha aprovação que ele queria quando terminasse de descrever seu projeto de aventuras, e enquanto eu escutava aquelas fantasias todas - infladas de distâncias inúteis - ia pensando também em abaixar seus cílios alongados, dizendo-lhe ternamente "dorme menino"; mas não foi para fechar seus olhos que estendi o braço, correndo logo a mão no seu peito liso: encontrei ali uma pele branda, morna, tinha a textura de um lírio; e meu gesto imponderável perdia aos poucos o comando naquele repouso quente, que já resvalava numa pesquisa insólita, levando Lula a interromper bruscamente seu relato, enquanto suas pernas de potro compensavam o silêncio, voltando a mexer desordenadas sob o lençol; subindo a mão, alcancei com o dorso suas faces imberbes, as maçãs do rosto já estavam em febre; nos seus olhos, ousadia e dissimulação se misturavam, ora avançando, ora recuando como nuns certos olhos antigos, seus olhos eram, sem sobre de dúvida, os primitivos olhos de Ana!
- Que que você está fazendo, André?
Aprisionado no velho templo, os pés ainda cobertos de sal (que prenúncios de alvoroço!), eu estendia a mão sobre o pássaro novo que pouco antes se debatia contra o vitral.
- Que que você está fazendo, André?
Não respondi ao protesto dúbio, sentindo cada vez mais confusa a súbita neblina de incenso que invadia o quarto, compondo giros, espiras e remoinhos, apagando ali as ressonâncias do trabalho animado e ruidoso em torno da mesa lá no pátio, a que alguns vizinhos acabavam de se juntar. Minha festa seria no dia seguinte, e, depois, eu tinha transferido para a aurora o meu discernimento, sem contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que levava da casa para a capela.
- Que que você está fazendo, André?
Aprisionado no velho templo, os pés ainda cobertos de sal (que prenúncios de alvoroço!), eu estendia a mão sobre o pássaro novo que pouco antes se debatia contra o vitral.
- Que que você está fazendo, André?
Não respondi ao protesto dúbio, sentindo cada vez mais confusa a súbita neblina de incenso que invadia o quarto, compondo giros, espiras e remoinhos, apagando ali as ressonâncias do trabalho animado e ruidoso em torno da mesa lá no pátio, a que alguns vizinhos acabavam de se juntar. Minha festa seria no dia seguinte, e, depois, eu tinha transferido para a aurora o meu discernimento, sem contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que levava da casa para a capela.
"Lavoura Arcaica", Raduan Nassar
(Raduan Nassar nasceu no dia 27 de Novembro de 1935)
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