Bocage no futebol
Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha
casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua
idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: não havia palavrão
que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de
conselhos, por todos os lados: - "Não brinca com Fulano, que ele diz
nome feio!". E o Fulano assumia, aos meus olhos, as proporções feéricas
de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas o tempo passou. E
acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava com
a razão. Sim, amigos: cada nome feio que a vida extrai de nós é um
estímulo vital irresistível. Por exemplo: os nautas camonianos. Sem
uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um
Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca
da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável
palavrão.
Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse
impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade:
retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como
jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou o
torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para
mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois
bem: está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja
bocagiano. O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo
constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos
os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os
dentes. Parecem dopados e realmente o estão: o chamado nome feio é o
seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.
Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o caso de
Jaguaré. No seu tempo, os clubes não tinham departamento médico e um
jogador podia andar com a boca em petição de miséria, desfraldando
cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: não tinha dentes, só cáries. E
seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo, permanente e
terrível. E acontece o seguinte: a época de Jaguaré coincidiu com a
infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol. O sujeito
que tinha para a média, para o pão com manteiga, podia se considerar um
Rockefeller, de tanga, mas Rockefeller.
Até que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clube
estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propostas dignas de
um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa inexpugnável. Não
queria aceitar nem por um decreto. Acabou cedendo. Andou pela
Espanha e até por Paris. Mas era outro, como homem e como craque. Como
jogar sem a pornografia lusobrasileira? Sem as expressões obscenas que
dinamizam, que transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las
seria uma traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada
nostalgia dos nomes feios intransportáveis. Finalmente, não pôde mais:
voltou correndo para o Brasil. Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda
miséria. Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos
palavrões terrenos.
"À Sombra das Chuteiras Imortais - Crónicas de Futebol", Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)
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