quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Carlos Malheiro Dias

Entregou-se a noite inteira, consolando-o, afogando-o de carícias, tratando de lhe curar toda a desgraça com palavras meigas de amor, aconchegando-o à macieza da carne, sumindo-se nele, terna, gemendo, calcando os seios ao seu peito. Mas naquela entrega não havia nem as sombras desses ardores antigos, que estremeciam o corpo da mulata, dos calcanhares às fontes. A posse insatisfeita, largada por ambos, num desalento, acabara de lhe varrer toda a poeira da esperança em que já se desfizera o esqueleto dessa fé, havia muito cadáver. Sobre eles caía uma fina chuva de pesar; uma desolação envolvia-lhe a alma, com um crepúsculo prenhe de trevas, no último período de uma gravidez hedionda do fim próximo. Ele tinha até medo de pensar, tratando os pensamentos como rondantes perigosos da sua noite, e por quem se sentia perseguido, apavorado, transido de susto. Desviava-se de toda a preocupação, quebrando esquina aos primeiros passos da razão, à primeira sombra de raciocínio.

"A Mulata", Carlos Malheiro Dias

(Carlos Malheiro Dias nasceu no dia 13 de Agosto de 1875. Morreu em 1941.)

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