sexta-feira, 31 de julho de 2015

António Rebordão Navarro

As janelas abriam-se às manhãs coruscantes, às salobras manhãs em que um mar leitoso de névoa ia do chão ao céu, descia dele, entrava nas narinas, picava a pele com pontinhas invisíveis de sal. As pessoas saíam das casas vestidas de costumes úteis ou necessários. Às vezes, as gaivotas sulcavam os espaços habitados, pouco seguras dos seus voos, transtornadas. O ar, subtil ou de roldão, agitava cortinas, cortinados, dissipava os aromas confundidos, os inúteis vapores, as profundas, misteriosas, emanações dos corpos que a noite acumulara. De súbito, podia ouvir-se uma cantiga, um repicar de trálá-lás, a melopeia plangente de um fragmento de auto ou de comédia trazida dos longes da província, a cançoneta trauteada de um filme português, de um quadro de revista, misturada aos rumores de pregas alisadas, sacudir de panos, desfraldar de colchas, abanar de colchões, roupa a lavar nas pias. Podia, também, inopinadamente, escutar-se um borborigmo penetrado de silvos, de alguma telefonia demorando a aquecer, a transmitir vozes e ritmos sobrelevando, por instantes breves, os demais.
As ruas começavam a mexer-se nos perfis indecisos das manhãs, fazendo explodir em centelhas vibrantes os azulejos das fachadas, brilhar as suas tintas, incendiar a sua cal, ou enredando-as num véu pardo, inconsútil, abafando vozes, gritos, ruídos.

"A Praça de Liège", António Rebordão Navarro

(António Rebordão Navarro nasceu no dia 1 de Agosto de 1933. Morreu no passado mês de Abril.)

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