Logo que as cabras e
as ovelhas entestaram à corte, o "Piloto" deu por findo o seu trabalho. E
antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os serviços, se dirigir a
casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase
raspando a terra, ia triste, cismático, como perro vadio de
estrada, descoroçoado da vida. Subitamente, porém, sorveu no ar algo que
lhe era conhecido. A cauda ergueu-se num ápice, formando volta que nem
cabo de guarda-chuva; a cabeça levantou-se também e nela luziram os
olhitos até aí amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava
cheio de tentações, de paragens obrigatórias, estabelecidas por todos os
cães que passaram ali desde que Manteigas existia, desde há muitos
séculos. Forçado a deter-se, ele regava, à esquerda e à direita, rudes
pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, mas fazia-o alegremente e
com o visível modo de quem leva pressa. Em seguida, voltava a correr no
faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era maior o
seu alvoroço. Por fim, lobrigou-o. Horácio estava junto de Idalina,
também conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que
emergia da terra, ao cabo das decrépitas e negrentas casas do Eiró, no
cimo da vila. E tão atarefado parecia Horácio com as palavras que ia
dizendo à rapariga, que não deu, sequer, pela chegada do cão. Vendo-o
assim, "Piloto" hesitou um instante, enquanto agitava mais a cauda e
tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se decidiu. E, humilde,
foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costume quando
este o chamava, à hora da comida, nos dias em que os dois andavam
pastoreando o gado, lá nos picarotos da serra. Só então o amo deu por
aquela presença. Ele regressara nessa tarde do serviço militar e, no
entusiasmo de ver pai e mãe, os vizinhos, e, sobretudo, Idalina, não se
havia lembrado ainda do seu antigo companheiro. Agora, porém,
afagava-lhe a cabeça e metia, enternecido, um parêntesis na narrativa
que estava fazendo:
- Olha o "Piloto"! O meu "Piloto"!
"A Lã e a Neve", Ferreira de Castro
(Ferreira de Castro nasceu no dia 24 de Maio de 1898. Morreu em 1974.)
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