O Noel estava num hospital do Rio, morrendo de câncer. Isso foi em 1973, no começo de 1973. Ele não tinha sessenta anos ainda, e tudo o que ele queria era chegar aos sessenta anos, mas não, aos sessenta não chegaria, estava morrendo. Câncer, doutor. Na bexiga, parece. Coisa horrível - preciso lhe dizer? -, horrível, horrível. Tiveram de colocar uma sonda urinária... Horrível. Bem, mas então ele estava lá, morrendo. E aí uns generais, que tinham vindo ao hospital por causa de um colega doente, resolveram visitar o Noel. O motivo não sei ao certo. Talvez fossem amigos de Noel, tinha tantos amigos, inclusive entre os militares, muitos haviam trabalhado com ele e o admiravam; talvez achassem que a coisa pegaria bem - era a época da ditadura, visitar o Noel, que era uma figura tão respeitada, principalmente na esquerda, poderia repercutir bem na opinião pública.
Chegaram no quarto, bateram na porta e, como ninguém respondesse, foram entrando. Ali estava o Noel, deitado, olhos fechados, respiração estertorosa - morrendo. Os generais, consternados, não sabiam o que fazer. O que é que podem cinco generais fazer ao redor de um moribundo? Nada. Olhavam, simplesmente. E esperavam que alguma coisa acontecesse.
Aconteceu. De repente o Noel abriu os olhos. Abriu os olhos e olhou os militares. Os dois que estavam a oeste da cama, os dois que estavam a leste, o que estava ao sul - a norte não havia general algum, faltava general para o norte, e mesmo que houvesse de nada adiantaria, ao norte a cama estava encostada na parede, nenhum espaço sobraria para um general, por magro que fosse; olhou todos, um por um, com aquele olhar debochado dele. Um dos generais perguntou como ele estava. E o Noel, que, mesmo morrendo, continuava o gozador de sempre, respondeu: estou como o Brasil, na merda e cercado de generais.
"A Majestade do Xingu", Moacyr Scliar
(Moacyr Scliar nasceu no dia 23 de Março de 1937. Morreu em 2011.)
Adorei!!!
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