segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Alves Redol 2

Ia já para três dias que o tractor parara e a regadeira não via pinga de água trasfegada do Tejo. 
O arrozeiro, apertado pelo patrão, andava numa dobadoura, por marachas e linhas, a deitar olho aos canteiros de espiga mais loira, fazendo piques, agora aqui, agora ali, para que as águas fossem caminhando para a vala de esgoto e os ranchos pudessem meter foices no arrozal. 
De pá ao alto, descansada no ombro, o "seu Arriques" já pensava na volta a casa, pois da sangria à recolha do bago poucas semanas iam. 
- Que rica seara! Andei-me nela que nem sombra atrás d’alma penada, mas o patrão arrinca para cima de quarenta sementes. Se os outros a pudessem comer côa inveja... 
E lançava a vista sobre o manto de panículas aloiradas, que os camalhões percintavam e a aragem branda enrugava, como mareta em oceano de oiro. 
Mais além e aqui, uma mancha ou outra de verde a denunciar o cromo que o sol lhe arrancava, indício de algum cabeço que as enxadas, no armar da terra, não haviam derrubado. 
- S’o patrão não andasse de fogo no rabo por mor do rancho, seis dias de molho davam-lhe uns saquitos bem bons. Assim... ainda adrega uma seara como por aqui não há outra. 
Andava por oito meses que corria aqueles combros de alto a baixo. Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem receber uma lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal que todos os dias entrava Lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fossem afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua. 
Quantas noites não pregara olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.

"Gaibéus", Alves Redol

 (Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em1969.)

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