quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Nelson Rodrigues

O craque na capelinha 

Falei em craque, mas, em tempo, retifico: era um perna-de-pau. Com uma agravante: perna-de-pau de longínquo, de antediluviano passado. Floresceu, se não me engano, por volta de 914, 916. Era a época inefável em que as mulheres não raspavam nem as pernas, nem debaixo do braço. E essas canelas barbadas, essas axilas luxuriantes definiam um tipo de civilização. Pois bem: o perna-de-pau, que já enterrava o time em 1915, não tardaria a abandonar o futebol. Seu último jogo ocorreu na semana em que assassinaram Pinheiro Machado. De então para cá, ele veio arrastando sua decadência, através das semanas, meses e anos. Por último, não comia, nem bebia - era a única fome, a única sede do Brasil. Um dia desses, após uma agonia fétida e terrível, o homem morreu. E, então, moradores do bairro, em conluio com alguns comerciantes, resolveram custear-lhe o enterro.
Fui vê-lo na capelinha, para onde o remeteram. Diante dele, diante do ser transfigurado, verifiquei o seguinte: não há morto canastrão. Vestido de noivo, com sapatos engraxados, ele tem a face, o ríctus, o perfil do grande ator. Assim acontecera com o perna-de-pau: no caixão, apresentava uma nobre e taciturna máscara cesariana.
O diabo era o ambiente do velório. Eis a verdade: nenhum morto devia ir para as capelinhas, jamais. Elas traduzem um sintoma terrível da nossa época. Antes de mais nada, significam um frívolo desamor à morte e aos mortos. Não sabemos morrer, nem enterrar. E pior do que isso - não sabemos fazer quarto. Essa impotência diante da morte é o melancólico e inevitável resultado das capelinhas. Antigamente, o defunto tinha domicílio. Ninguém o vestia às carreiras; ninguém o despachava às escondidas. Permanecia em casa e, pois, dentro de um ambiente em que até os móveis eram cordiais e solidários. Armava-se a câmara-ardente numa doce sala de jantar ou numa cálida sala de visitas, debaixo dos retratos dos outros mortos. Escancaravam-se todas as portas, todas as janelas; e esta casa iluminada podia sugerir, à distância, a ideia de aniversário, de casamento ou de velório mesmo.
Era a época em que as mães, as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt. Lembro-me de uma menina que morreu, de febre amarela, quando eu tinha meus cinco anos. Pois bem. A mãe da morta quase pôs a casa abaixo. Batia com a cabeça nas paredes; derrubava as cadeiras; e queria arrancar os próprios olhos. Teve que ser contida, amordaçada, quase amarrada. Todos haviam parado de gemer, de chorar, para espiar essa dor maior. Houve um momento em que só ela gemia, só ela chorava, como uma insuperável solista.
Hoje, isto não é possível. A capelinha esvaziou a morte do seu conteúdo poético dramático e, direi mesmo, histérico. Preliminarmente, o defunto está fora do seu clima residencial. Como os demais, ele é um constrangido, um cerimonioso, um deslocado. Sim, todos, inclusive o cadáver, têm um ar de visita. Essa polidez impede a violência e a espontaneidade da dor que vem de dentro, das profundezas, como um gemido vacum. Bem que a viúva desejaria espernear, esganiçar-se, como uma canastrona do velho teatro. Mas eis a verdade: a capelinha torna inexequíveis as histerias
magníficas dos funerais antigos.
Eu sei que o perna-de-pau era apenas um perna-de-pau, contemporâneo, quase dizia colega do assassinato de Pinheiro Machado. Ainda assim. Qualquer morto é um césar.

"À Sombra das Chuteiras Imortais - Crónicas de Futebol", Nelson Rodrigues

(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)

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