Em 1938 escrevia-se desta maneira nos jornais portugueses:
António von Doellinger, sargento reformado do Exército Colonial, foi levado a enterrar.
Na câmara ardente, ao redor dum caixão de quatro tábuas singelas, os seus filhos, crianças tamaninas, choram.
A mais inocente e novinha de todas desvia um lenço sedalino que cobre o rosto esverdeado do defunto. O cadáver está ainda morno, exalando um cheiro canfórico a denunciar a decomposição deletéria que embriaga os abutres e as corujas. O olhar, derramado, vítreo, tem os estigmas reveladores dum horrível sofrimento moral, adivinhando-se que, daquele corpo macerado, foi o coração, alanceado pela dor cruciante da despedida à orfandade, o derradeiro órgão a morrer.
E o lenço de prateada seda cobre de novo os lábios descarnados do pobre Doellinger.
Tuberculizara. Passara privações. Desde que a doença entrara naquele tugúrio, a Conferência de São Vicente de Paulo, de sinistra nomeada, ofertou socorro ao Doellinger. Impunha, porém, uma condição: o doente devia confessar-se, devia confortar-se com os sacramentos da Igreja Católica. Não era penosa a exigência... Um tuberculoso nada adianta nem atrasa, em tal estado, engolindo a hóstia consagrada - um pedaço de obreia amassada com saliva de sacristão.
António von Doellinger, contudo, tem escrúpulos, só porque era anticlerical.
Mas um padre insistia - e, aguardando o momento desejado, quando o doente entrava no estertor da agonia dolorosa, abeirou-se-lhe do leito frio, vestindo de saia negra, na noite negra, como a morte negra que rondava à cabeceira do tuberculoso.
Doellinger recusou ainda nobremente.
Mas era necessário dizer à estupidez do indígena crédulo, fanático e supersticioso, que o ateu implorou, na hora derradeira, na hora do delírio, da alucinação, da inconsciência, o perdão de Deus e a piedade da Santa Madre Igreja. Ainda o sargento Doellinger, estóico ante a morte que tantas vezes lhe fora companheira na inóspita África, quando lutava nas fileiras, teve um gesto grandioso, heróico e teatral, bradando:
- "Não preciso da Igreja, não preciso do perdão de Deus... Não sou um criminoso..."
O padre teria sentido um arrepio de medo, um estremecimento de consciência - e largou a vítima inofensiva.
E, ao nascer da aurora, um sino dobrou, plangente, a finados!
A consciência alheia, as ideias dos nossos semelhantes são, para a Igreja Católica, coisas sem sentido.
O que é preciso, para maior glória de Deus, é que os adversários do catolicismo se arrependam, na hora derradeira, na hora suprema, quando o espírito vacila, quando o corpo arrefece ao contacto do gelo da morte, quando o indivíduo está já em estado de inconsciência, de irresponsabilidade, quando entra no delírio, na demência! Então a vítima pode ceder, porque costuma fraquejar ante o fantasma sinistro que gargalha na ronda nocturna.
O cheiro a cadáver embriaga e consola os abutres que começam a grasnar, sedentos de sangue, ávidos de carnagem dos corpos pútridos!
Este texto, com o título "Cheirava-lhes a cadáver...", foi escrito, muito provavelmente, pelo jornalista e resistente antifascista fafense Manuel Teixeira, então proprietário e director do semanário republicano O Combate. José Manuel Teixeira da Silva e Castro (1906-1980) era irmão do também jornalista (António) Teixeira e Castro (1928-2004), com quem acamaradei no Primeiro de Janeiro. O Combate, fundado em 1930, teve vida atribulada e efémera. Foi fechado definitivamente pela Censura em 1941. Há anos que guardo religiosamente a reprodução fotográfica da primeira página deste número, que me foi revelado pelo Sr. Vale do Arquivo do Janeiro. Copiei a prosa com recurso a lupa e não garanto isenção de pequenos erros na transcrição. Até da data não tenho a certeza: mas se não é de 1938, anda por lá perto.
Visito-o amiúde. Leio e releio, e cada vez fico mais desconfiado de mim. Com um antepassado da marca deste sargento von Doellinger, donde raio é que me vem a costela sacrista?
Ai estáa mais um VON DOELLINGER a demonstrar a defesa dos escrúpulos. Somos assim lutamos pelas nossas convicçoes ate ao fim. Sobre a tua veia sacrista, a mesma devera ser vinda deste tempo :
ResponderEliminarO teólogo e historiador bávaro, Johann Joseph Ignaz von Döllinger (1799–1890), foi o principal líder dos velhos católicos, mas curiosamente nunca se considerou um cismático, apesar de ter sido excomungado pela Santa Sé devido sua ordenação como bispo Velho-Católico. A Igreja Anglicana e a Igreja jansenista holandesa de Utrecht reconheceram e providenciaram a ordenação episcopal dos bispos das então recém-formadas Igrejas vétero-católicas, mantendo a sua sucessão apostólica.
Abraço Miguel Von Doellinger
Abraço, Miguel.
EliminarEste fabuloso texto deveria ser dado a ler a muitos dos rapazinhos (alguns dizem-de doutores, não é ?)que enchem as redacções dos jornais, onde era costume (bom costume),estarem jornalistas. Nesta Peça dá para perceber a linhagem a que pertence o meu Amigo Hernâni e o autor demonstra bem o seu anti-clericalismo. Eu tive um tio por afinidade, também vila-realense que, o deus dele era o vinho, tinto de preferência, que na hora da morte fez exactamente o mesmo que este teu antepassado. Agora vem a parte em que eu discordo do autor, ou seja, a Conferência São Vicente de Paulo. Claro que vou descontar os seus defeitos, tais como: os chazinhos de caridade, cujas inscrições revertiam para um fundo de beneficência, eram senhoras de sociedade, era assim que gostavam de fazer caridade, mas à sua porta os mendigos há muito haviam desistido de implorar.
ResponderEliminarNo entretanto, posso dizer que, com todos os defeitos que tivessem e tinham, foi gente dessa que valeu à minha mãe e aos seus quatro filhos. Sem elas, as senhoras da Conferência, teria-mos passado mais fome do que passamos, sem elas, as senhoras da Conferência nós não teria-mos vivido numa casa nova a estrear, com três quartos, sala de refeições que também era cozinha e casa de banho de água fria é certo, mas esse problema eu sempre resolvi com um pouco de engenho e arte. A única coisa que pagava-mos era a água consumida, uma vez que a luz eléctrica só chegaria ao prédio uma década mais tarde, já eu estava na Guerra Colonial. Aí vivi até casar, tal como os meus irmãos. O prédio comportava dezasseis fracções, doze T3 e quatro T1 para casais sozinhos. Com o advento do 25 de Abril tudo mudou, o prédio sofreu algumas alterações, passou a ser um centro de dia, mas os moradores de origem, com alguns reajustes, mantiveram a sua casa enquanto viveram. O prédio era conhecido por casa dos pobres e os passantes gostavam de o afirmar alto e bom som. Mais tarde, depois de melhor informados, mudaram de opinião e, ao passar, praguejavam: isto afinal, é a casa dos ricos. Por fim, vou deixar aqui a quadra da autoria do Pároco da Freguesia, Guilherme de Oliveira de seu nome e grande obreiro da Obra. Afixada na entrada sobre fundo de azulejos azuis, rezava assim:
" FEZ-ME O RICO PARA O POBRE
TER CASA PARA MORAR
NÃO É UM PALÁCIO NOBRE
MAS TEM NOBREZA ESTE LAR"
Abraço
Gaspar de Jesus
Obrigado, Amigo Gaspar, pela tua opinião. Estava a contar com ela. Grande abraço,
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