Foto Hernâni Von Doellinger |
Os melhores bolinhos de bacalhau do mundo eram os da Albertininha da Lameira, em Fafe. Contava a lenda que estes maravilhosos bolinhos eram moldados no sovaco da prendada cozinheira, o que lhes emprestaria aquele gosto tão peculiar. A vila antiga dava-se muito a estas lendas: dizia-se também, por exemplo, que os tremoços da Marrequinha da Recta eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava na demolha.
A verdade é esta: ainda cheguei a ver a Albertininha, numa tarde de sábado, a fazer a massa dos famosos bolinhos, de alguidar entre as pernas, junto ao fogo da lareira, na cozinha asseada e sombria, mas a história do sovaco enformador afinal era uma treta - isso posso jurar, e tive pena.
Os bolinhos do Manel do Campo também eram de se lhes tirar o chapéu. E, de um modo geral, as pensões e os tascos de Fafe faziam gala de confeccionar e servir um produto, como agora se diz, fiel às origens e de altíssima qualidade. Esta tradição local creio que se mantém, em sítios como, veio-me agora a ideia à boca, o Fernando da Sede (Adega Popular). Os bolinhos de bacalhau com salada de feijão-fradinho e arroz do Fernando surpreendiam e encantavam os visitantes, e, para os da terra, eram uma esplêndida entrada para a vitelinha que haveria de vir. Mas isso, nos dias que correm, seria já refeição a pedir uma segunda hipoteca da casa.
É. Os bolinhos "de morrer por mais" são no Minho - bem o sabia mestre Aquilino. Em Fafe, é claro, mas também no Manuel Padeiro e no Gaio, em Ponte de Lima e em dias sim, ou no desaparecido Conselheiro, em Paredes de Coura, no tempo do saudoso amigo Vilaça Pinto, sempre. Em sítios assim, que os havia bons e tantos, e cá em casa também nos ajeitamos, mas não servimos para fora...
Os piores bolinhos de bacalhau do mundo eram em Penafiel, num pequeno café cujo nome não interessa. Três mesas, dois jornais, um balcão sumário e a simpatia imensa do dono. Os bolinhos eram tão maus, tão esplendidamente maus, que eu nunca falhava quando por lá passava a horas de aperitivar. Metia o pé no degrau da entrada, ao baixo, e saía logo meia dúzia de pedras de gelo directamente da arca frigorífica para a fritadeira de óleo cansado, que é "Para o senhor, para serem fresquinhos". Eu agradecia a deferência e reservava-me. Cinco minutos, não mais. As pedras de gelo vinham para a mesa a ferver e a pingar, agora em forma aparentada com a dos verdadeiros bolinhos de bacalhau, queimavam-me a boca e antes assim, que enganavam o paladar. Não sabiam ao bacalhau que não tinham, mas também não sabiam à batata que eram só. Escangalhavam-se ao toque. Eram extraordinariamente intragáveis e eu comia-os. Já disse: o patrão era gente boa e tinha três mesas e dois jornais diários no estabelecimento. Sei dar valor às coisas verdadeiramente importantes. Para apagar o incêndio, bebia uma taça de um obscuro vinho branco de cápsula que sabia a remédio mas não me fazia bem.
A minha mulher e eu descobrimos o cafezinho por acaso e levei lá três ou quatro amigos. Para provarem "os piores bolinhos de bacalhau do mundo", era o que lhes prometia, e os amigos depois concordavam comigo. Aqueles bolinhos nunca me deixaram ficar mal. Mereciam um prémio.
Até porque nos abriam horizontes. A seguir, íamos à Pita Arisca, em Lousada, comer talvez o melhor cabrito assado do mundo...
Os de Lisboa, lisboetas de gema ou simpatizantes, têm a mania de chamar "pastéis de bacalhau" aos bolinhos de bacalhau. Néscios! É como os pândegos dos franceses chamarem "fromage" a uma coisa que toda a gente sabe que é queijo e foi inventada em Ponte do Lima. Aqui atrasado, o Miguel Esteves Cardoso escreveu sobre bolinhos de bacalhau no jornal Público. O bom do Miguel nasceu na capital, estudou em Inglaterra e confessa que só muito recentemente é que descobriu a sério o Minho. Também ele chama "pastéis de bacalhau" aos bolinhos do mesmo, mas é o Miguel, está desculpado.
O jornal é que não. Lembro-me de uma vez em que o periódico da Sonae reuniu "dois painéis de jornalistas" da casa e "especialistas em gastronomia", um painel em Lisboa e outro painel no Porto, para provarem bolinhos de bacalhau comprados fresquinhos "em diferentes pastelarias nas duas cidades". A notícia dizia que o resultado foi uma desilusão completa: as amostras recolhidas revelaram-se todas incompetentes.
Mas de que é que estariam à espera os ilustres paineleiros? Bolinhos de bacalhau em Lisboa e no Porto? E em pastelarias e cafés, percebi bem? Panikes e croissants com chocolate, isso é que os dois comités de sábios deviam ter provado. Pedissem eles arroz de grelos, pastelões de petinga, pataniscas ou caldo de nabos, e seria o mesmo desastre. Os cafés e as pastelarias do Porto e de Lisboa não são para esses preparos. Vá lá, o caldo de nabos... talvez.
Agora. Hoje são "os 21", em pleno Agosto, dia maior das Festas em Honra de Nossa Senhora da Saúde, ou Festa da Lameira, "Lameira de Agosto" ou simplesmente Lameira, que pertence à freguesia do Rego, ou São Bartolomeu do Rego, Celorico de Basto, mas para os velhos fafenses era e é como se fosse Fafe. Antigamente, neste dia, havia por lá uma valente feira de gado, e uma vez uma vaca espantou-se não sei com quê, soltou-se do sítio onde estava a guardar e correu o arraial inteiro de uma ponta a outra a espalhar o pânico e o caos em direcção à Pica, escornando e escoiceando a torto e a direito, desfazendo tendas, barracas e ornamentações, invadindo tascos e casas sérias, saltando para cima de carros e outros veículos mais ou menos motorizados e levando à frente aquele povo todo, aflito e tolo que não sabia aonde se havia de meter, anjinhos e mordomos incluídos. Eu, muito bem entrincheirado, ri-me como um perdido. Quer-se dizer: a coisa não constava do programa, mas foi uma bonita tourada...
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