sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Era uma vez Fafe e a Volta a Portugal

A vila de Fafe fervilhava de tascos na segunda metade do século passado. Eram porta sim, porta não, provavelmente caso único a nível mundial, coisa talvez digna do Guinness - casinos e hotéis em Las Vegas, tascos e tascas em Fafe. Tascos, tabernas, casas de pasto e quatro ou cinco pensões-restaurantes do melhor que existia em Portugal para quem percebesse realmente do assunto, porque em Fafe comia-se e come-se bem e bom. E quanto a beber, então nem se fala. À mesa, portanto, nada a apontar - antes pelo contrário. Já no que diz respeito à cama, isto é, a locais para pernoita, naquele tempo estávamos muito mal servidos. Se aparecesse assim algum acontecimento em grande, fora do ramerrame quotidiano, um evento que trouxesse gente de fora com intenção ou obrigação de ficar por cá de um dia para o outro, não havia onde meter o povo todo, a não ser que se inventasse. E inventava-se.
Com a Volta a Portugal em Bicicleta tinha de ser. Antigamente as etapas da Volta costumavam começar na mesma terra onde tinha terminado a etapa do dia anterior, e Fafe fazia parte do roteiro. Os fafenses recebiam muito bem os ciclistas e toda a caravana de uma forma geral. Os prémios eram muitos e oferecidos pelo comércio e pela indústria locais. Taças, medalhas, electrodomésticos, bicicletas, cortes de tecido, cortes de cabelo, peças de roupa e de louça, chapéus de palha, guarda-chuvas, produtos de higiene e limpeza, canetas, envelopes com dinheiro e múltiplas inutilidades, que passavam para aí uma semana em exibição na montra da Electra, se não estou em erro. Em Fafe, se um ciclista da Volta não chegasse, vamos lá, nos dez primeiros lugares, então mais valia cortar a meta em último. O último ciclista a chegar a Fafe ganhava uma magnífica candeia novinha em folha com uma certa quantia metida lá dentro. E os meus olhos ficavam-se todos os anos na candeia tão brilhante e propícia a sonhos. Se eu fosse ciclista, palavra de honra, havia de dar sempre o máximo para ser o último!...
Os prémios eram entregues aos responsáveis das equipas numa aprazível sessão nocturna, no Jardim do Calvário, porventura com um ou outro "apontamento musical" e decerto garbosamente apresentada pelo Landinho Bacalhau ou pelo Zé Fala-Barato, ou se calhar por ambos, com umas larachas pelo meio, não devo estar a dizer asneira nenhuma.
E onde ficavam a dormir os ciclistas? Algumas equipas, mais exigentes e endinheiradas, desciam até Guimarães, gabo-lhes o gosto. Em Fafe, esgotadas as poucas camas da hotelaria convencional, e aqui é que entra a invenção, instalações mais ou menos públicas eram requisitadas e, se necessário, transformadas em dormitórios para acolher atletas e acompanhantes. Por exemplo, a camarata dos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, serviu de pouso, em anos diferentes, às equipas do Baixo da Banheira e do Académico do Porto, do nosso Chico Marinho. E eu andando por lá.
Em 1967, os belgas da Flandria vieram à Volta a Portugal e Fafe instalou-os no palacete ao lado dos Bombeiros, em frente aos Medons, e que já serviu de museu da imprensa mas na altura não servia para nada. Era um casarão abandonado, uma espécie de casa assombrada, decadente inclusive em sentido literal, com o espaço exterior, dentro dos portões e do alto gradeamento, entusiasticamente entregue ao capim descontrolado, à folhagem podre e fedorenta e às silvas amazónicas que assustavam. Não era normal os estrangeiros virem correr à nossa Volta, e decerto por isso a mordomia. O interior do edifício terá sido sacudido e arejado, despejado de ratos e limpo das teias de aranha, só foi preciso meter camas, trigo limpo, farinha amparo.
A Volta a Portugal acabou e nós tínhamos de ir lá dentro, ao palacete, ver como é que aquilo era. Nós, quero dizer, o nosso grupo de miúdos, ali do Santo Velho e das redondezas, comandados pelo intrépido Daniel Carcereiro, que era apenas um pouco mais velho mas tinha um enorme carisma e sentido de liderança, embora eu na altura não soubesse o que isso queria dizer e nem sequer conhecesse estas palavras.

O Daniel, é preciso que que note, chamava-se Carcereiro por causa do pai, que era o responsável pela cadeia de Fafe. A cadeia mesmo, o velho edifício granítico com grossas grades de ferro quase ao nível do chão através das quais os presos conversavam com familiares, amigos ou simples passantes, com espaço até para enfiarem as pernas cá para fora, para a rua, as pernas em liberdade, balançando-se, eventualmente também as mãos e o nariz, às vezes as orelhas, uma de cada vez, mas o resto do corpo não. Senão, nem era cadeia nem era nada.
O sítio é exactamente o mesmo onde está hoje o Palácio da Justiça, inaugurado a 13 de Outubro de 1963, dia em que também abriu portas a nova cadeia comarcã, com entrada pela actual Rua Prof. Manuel José da Costa, nas traseiras do estádio e junto à piscina municipal. E a família do Daniel mudou-se para lá também. O edifício já serviu entretanto como posto da GNR e agora não sei para que serve, mas essa parte sabem vocês muito melhor do que eu.

Portanto, deixámos passar uns dias, para disfarçar, e invadimos o palacete. O Daniel tomava conta de nós, nunca permitiria que algo de mal nos acontecesse. O Daniel tinha isto, tão singular: apesar de aventureiro, brigão e valente, desafiando sem medo os maiores do que ele, fossem quantos fossem, era de uma inesperada e desarmante bondade em relação aos miúdos mais novos. Ele era o nosso capitão e o nosso protector. Sempre atento e cuidadoso. E a invasão foi um sucesso.
Fizemos trinta por uma linha, deixámos tudo em pantanas, corremos todas as divisões de todos os andares até à mansarda, subindo e descendo escadas que faziam lembrar castelos, destruímos almofadas em guerras sem quartel, desengonçámos irremediavelmente camas e divãs, inutilizámos lençóis para fazermos de fantasmas, tudo a uma velocidade alucinante, com milhares de trambolhões à mistura, mas felizmente sem vítimas a lamentar. Na verdade, não foi tanto assim, mas assim contado tem muito mais piada. E a invasão foi mesmo um sucesso.
Ainda por cima encontrámos espalhados pelo chão imundo restos da alimentação dos ciclistas. Cubos de açúcar, quadradinhos de marmelada e outros doces e geleias, muito bem cobertos por milhões de formigas, que desbaratámos organicamente, isto é, ao pontapé e chibatada, seguindo as rigorosas orientações higiossanitárias do Daniel, que cheirou aquilo e decidiu, dando o exemplo: - Ainda está bom. Bora lá comer, que o que não mata, engorda! - E não podia ser mais sábio. Quase tão sábio como Nietzsche, que dizia "O que não nos mata torna-nos mais fortes", isto certamente depois de ter passado por Fafe.

O Daniel foi um razoável jogador de futebol, dos de barba rija, porém fez carreira como oficial de justiça, estou em dizer. Não convivemos há mais de trinta ou talvez quarenta anos, mas nunca me desapontou, isso é garantido. Estou-lhe grato, tenho por ele uma admiração antiga, e nunca lho disse. Confidenciam-me que o Daniel Carcereiro continua como era, um ser humano especial, com o seu feitio, cuidado!, mas disponível e leal, fiável, generoso, atento às injustiças e presente aos amigos, ainda e sempre sportinguista, o seu ponto de imperfeição, e possivelmente um pouco mais manso. Enfim, um comandante na reforma.
Moral da história: Tony Houbrechts, o belga da Flandria, ganhou a Volta a Portugal em Bicicleta de 1967. E eu comi-lhe o almoço.

P.S. - Texto publicado originalmente no meu blogue Fafismos. Entretanto, o Pedro Dantas teve a amabilidade de informar-me de que o palacete aqui contado tem dono, hoje em dia, e que "é um lugar belíssimo". Antes assim.

Sem comentários:

Enviar um comentário