Entreguei a urina para exame. O técnico, mais analítico era impossível, sem sequer olhar para mim, automaticamente, perguntou:
- Está fresca? Trouxe directo do frigorífico?
E eu fui franco:
- Não. Fiz há pouco, ainda está quentinha.
- É pena.
Com gestos elegantes, competentes, o técnico pegou no boião e verteu o
seu conteúdo num balão de pé alto, com o cuidado milimétrico de deixar o
copo um pouco abaixo de meio cheio. E disse, ainda sem me pôr os olhos:
- Espere aí um bocadinho, que já leva os resultados.
E eu esperei, todo contente com a novidade. O Serviço Nacional de Saúde vai de vento em popa.
Delicadamente, o técnico pegou no copo pela base, afastando-o de si com
todo o respeito, e começou a girá-lo vagarosamente, olhando a bom olhar o
seu conteúdo, no contraste com a parede branca. E tomou notas. Colocou o
copo sobre a mesa e rodou-o em pequenos círculos, primeiro devagar,
depois acelerando, para finalmente o levar ao nariz, uma vez, duas
vezes. Inalou, compenetradíssimo, e tomou notas. Sorveu uma pequena
quantidade de líquido, mantendo-o na boca sem engolir, apreciou-o por
momentos com todo o profissionalismo e finalmente cuspiu-o. E compilou
as notas:
- Muito bem. Ora, portanto, cor amarela palha, aspecto límpido, reacção a
6,0 e densidade a 1,013. Proteínas, glicose, corpos cetónicos,
pigmentos biliares, nitritos e sangue não detectáveis. Urobilinogénio a
0,2 e atenção a esses leucócitos. Estão de 10 a 25, vá ver isso.
Células epiteliais e eritrócitos, 0 a 2...
E eu, à rasca:
- Está no gozo, não está?
- Não. É a sério! - respondeu-me o técnico, fitando-me enfim olhos nos olhos e passando a explicar:
- Então você não me conhece? Nunca me viu na televisão? Eu sou, quero
dizer, eu era provador de vinhos, escanção famoso, abençoado por um paladar
indiscutivelmente gourmet, milimétrico, definitivo. Era dono de uma considerável
cadeia de restaurantes e garrafeiras de alto lá, mas quê, veio a crise. A crise antes da epidemia. A crise da fartura, digo
melhor: Portugal hoje em dia divide-se em duas partes, os chefes de
cozinha e os fadistas, e tanto uns quanto os outros são mais que as
mães. Eu, que, não é para me gabar, até me desunhava razoavelmente na
fadistice, meti-me nos comes e bebes, mas fiz mal. Com tanta gente no
ramo, acabei por cair, como o Newton avisara. É muito cão ao mesmo osso.
Que remédio, abandonei a cozinha, despedi-me e fui para longe. Resolvi
falir em grande estilo e pus anúncio no jornal. Arranjei emprego aqui no
laboratório do hospital a fazer de conta das minhas
antigas competências. Quer saber? Os aparelhos de análises à urina estão
avariados e inactivos há mais de meio ano, não há dinheiro para camas
quanto mais para os
mandar arranjar, e, olhe, não me posso queixar, juntou-se a fome com a
vontade de comer.
- Ó valha-me Deus, também analisa fezes? Isto é: para além de provador de mijo, também come merda?...
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