sábado, 28 de setembro de 2019

Quando as eleições eram livres e democráticas

Houve um tempo, a seguir ao 25 de Abril de 1974 e ao Verão Quente de 1975, em que as eleições corriam sempre bem, chovesse ou fizesse sol. Sobretudo as eleições autárquicas, que eram assim uma coisa mais maneirinha, mais caseira, mais privada, para não ir mais longe. Mas era geral. O mapa do País não interessava para nada, a logística era um pormenor, os cadernos eleitorais um mero adereço, as chapeladas as do costume mas gloriosamente ao contrário. Bebiam-se uns copos à boca das urnas e nas urnas propriamente ditas, fazia-se uma almoçarada com o pessoal de serviço de todos os partidos, que eram o PPD e o "da mãozinha" mais o gajo do PC que viera de fora e era um picuinhas e a senhora do CDS que era catequista e virgem segundo as últimas sondagens. O pai votava pelo filho que era tolinho e estava internado, o filho que era tolinho e estava internado votava pelo pai que já falecera, pai e filho votavam pela avó que se encontrava muito atacadinha e por isso não pôde ir, e depois a avó que se encontrava muito atacadinha ia e votava também. Havia quem votasse em dois lados, havia quem votasse duas ou três vezes no mesmo lado, havia quem votasse em dois partidos, e valia, havia quem votasse em quantas freguesias fosse preciso, era só dizer, havia quem quisesse e pudesse votar e não deixavam, havia quem se fizesse de ambulância, havia quem se fizesse de parvo, havia quem chamasse a polícia, havia quem chamasse o gregório agarrado ao garrafão levado pelo presidente da mesa a mando do presidente da junta. Chegada a hora das contas, ia-se aos cadernos e à acta, acrescentava-se aqui, desarriscava-se ali, rasgavam-se uns papéis, queimavam-se noves fora nada, o chato do PC também assinava, a beata do CDS amém, e no fim batia tudo certo. Podem crer: batia tudo certo.

As eleições eram do povo, eram, por assim dizer, um arraial libertário, mas cumpriam a função. Trafulhice, aquilo? Não. Bagatelas, pequenos truques de ilusionismo, alguns até bastante ingénuos e que geralmente acabavam por anular-se entre si e nem davam caso. Agora seria impossível que tal acontecesse, com a experiência burocrática entretanto adquirida, com o rigor vigente e o cada vez mais apertado controlo nos actos eleitorais, com os doutores a tomarem conta. Acabou-se o descaramento, isso é verdade. Agora os cambalachos fazem-se pelo soleno...

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