domingo, 1 de outubro de 2017

José Cardoso Pires 5

O largo das Freiras Descalças, com a capela e o hospital do mesmo nome, está sempre a arrulhar de pombas brancas. O Corvo, quando não tem mais que fazer ou quando os clientes da tasca o começam a azedar com parvoíces, vai até lá. Vai por ir, só para chatear. Só para criar alvoroço nas mimosas de pena virgem que se passeiam no empedrado a dar à cabecinha. É claro que as pombas, quando o vêem aproximar-se, abrem logo alas a passo corrido e de peito levantado, porque não confiam lá muito no olhinho libertino que ali vem, mas ele avança a direito, luzidio e muito senhor. À passagem deixa cair um ou outro galanteio a esta e àquela. "Sua galdéria", "Sua aluada", mas nunca se vira para trás, é o viras. Ouve-as rolar suspiros e a tremer a asa, encandeadas certamente com o seu perfil negro espelhado de reflexos azuis; ouve-as todas saltitantes a azougadas, e quando chega ao outro lado do largo volta-se para as olhar de frente: Então que é isso, meninas?
Na taberna alguns bebedores mais vivaços tentam meter conversa com ele. Começam por lhe perguntar o nome, é o costume, e acabam por lhe chamar Vicente, outra parvoíce.
"Vicente?", pergunta um dia um fulano a fazer-se surpreendido. "Se calhar ainda pertence à família dos que andavam atrás do santo, ou é confusão minha?"
Confusão, uma porra. O Corvo, que é taberneiro por convivência com o dono, conhece todas as velhacarias do vinho e como, ainda por cima, é ateu praticante, a conversa do Santo Vicente e dos corvos de Lisboa fá-lo virar as costas, enojado. Desde que se conhece nunca lhe faltaram doutores a provocá-lo com olhares e a falarem para a assistência em corvos históricos do brasão de Lisboa e noutras fábulas correlativas.

"A República dos Corvos", José Cardoso Pires

(José Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925. Morreu em 1998.)

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