sexta-feira, 3 de julho de 2015

Uma boa parábola deve ser à prova de água

Foto Hernâni Von Doellinger

- Se me dá licença, Luisinha, vou contar-lhe uma pequena história a propósito. Uma parábola, que também as conto bem. Era uma vez um velho pescador muito pobre, muito pobre, tão pobre que nem tinha moscas em casa. A sua amantíssima esposa era muito velhinha, muito velhinha, tão velhinha que sentia a falta das moscas. E não tinham filhos. Certo dia, quando andava na faina à faneca, o paupérrimo pescador foi surpreendido por uma violenta tempestade. Uma tempestade dantesca, se não fosse asneira dizê-lo. As ondas eram adamastores, o barco uma casca de noz (como se fosse possível...), uma esfera desgovernada numa máquina de flippers de gás a fundo. É hoje que me afogo, é hoje que me afogo, pensou o homem e calçou as galochas, sem fazer ideia do que é uma máquina de flippers. A aflição do velhíssimo pescador era do tamanho da borrasca: medonha. Graças a Deus, lembrou-se do Mártir São Sebastião e fez uma solene promessa: se Nossa Senhora do Leite e do Bom Parto lhe mandasse um filho, meteria imediatamente os sogros num asilo, livrando-os da fome de cão que passavam lá em casa, assim São Pedro o permitisse. Nessa noite de milagre, quando voltou são e salvo ao porto de abrigo do seu modesto porém honrado lar, a sua velhíssima e amantíssima esposa tinha-lhe guardado no borralho mortiço o fundo de uma malga com farinha-de-pau. O pescador despejou as galochas na pia de lavar a louça, para aproveitar, e ceou...
De braços teatralmente abertos, com a mão direita segurando a chávena do café e a esquerda agarrada ao pires, abanando compenetradamente a cabeça, em movimentos curtos, ritmados, de cima para baixo ou vice-versa a partir de uma certa altura, confirmando em absoluto a profundez da mensagem supra, Quitério fixava, inquiridor, num silêncio eloquente, uma estranha Luisinha que o olhava de boca aberta. Cansado de estar calado e de abanar a cabeça, Quitério perguntou finalmente:
- Percebeu?
- Olhe que não sei bem... - defendeu-se Luisinha, mais confusa era impossível.
- Pois aí tem, exactamente a esse ponto é que eu queria chegar - sentenciou Quitério, dando por encerrada a sessão.

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