segunda-feira, 20 de julho de 2015

Carlos Reverbel

Chamava-se Escolástica. No povoado ninguém sabia seu sobrenome, nem de onde viera. Ali morava desde tempos remotos, bem antes da fundação da charqueada que dera lugar ao lugarejo. Mas sua família, embora ignorada, devia ter alguma instrução. De outro modo ela não se chamaria Escolástica, nem teria boas maneiras. Ainda guardava, na sua humildade e penúria, traços delicados, gestos suaves, doçura. "A Escolástica não procura ninguém, mas é muito educada", diziam as vizinhas, a uma voz.
Seu rancho, de torrão, coberto de capim santafé, constava de uma única peça, dividida por uma parede de pau-a-pique. Três caixões de querosene marca Jacaré, superpostos e recostados num canto, faziam as vezes de armário. Uma trempe, colocada sobre duas linhas de tijolos, era o fogão. E ainda havia um banquinho desses mochos. Já cambaio. Embora olhada com bons olhos no vilarejo, Escolástica não recebia nem fazia visitas.
Mantinha soltas no terreiro umas poucas galinhas, que viviam do que encontravam ciscando nos arredores. Recolhiam-se à boca da noite, encarapitando-se nos galhos de um cinamomo, que ali nascera de semente jogada ao deus-dará. O lugarejo tinha no mínimo um cachorro "per capita", mas Escolástica dispensava essa companhia, preferindo a dos passarinhos, sem tirar-lhes a liberdade. Tico-ticos e canários-da-terra vinham comer no seu terreiro. E sabiás e cardeais, moradores nas margens arborizadas do rio que passava perto, ofereciam-lhe seus cantos. A ela e a uma caturrita, chamada Mimosa.
Muito asseada no seu rancho limpinho, Escolástica às vezes embirrava com a Mimosa, por causa da natural sujeira dos poleiros das caturritas, sempre bosteados por mais que se limpe. Mimosa era como as demais, no seu poleiro de bosta. Embora lhe quisesse bem e gostasse de sua companhia, Escolástica tratava Mimosa como empregada, fazendo-a conhecer o seu lugar. E tanto reclamara da sujeira do poleiro, sempre mencionando a mesma palavra, que a caturrita aprendeu a pronunciá-la, incorporando-a ao seu vocabulário: bosta.


Carlos Reverbel

(Carlos Reverbel nasceu no dia 21 de Julho de 1912. Morreu em 1997.)

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