Vamos começar pelo Benjamin, cuja foto figura em nosso álbum de família, o álbum que tenho diante de mim. É, aliás, a mesma desbotada fotografia que está na lápide de sua sepultura, no cemitério israelita. O que nela chama atenção é o ar assustado, tão típico de meu tio. Chamavam-no Ratinho (não se tratava de codinome; era apelido mesmo): os olhinhos pretos e as orelhas de abano tornavam-no parecido com um camundongo. Não aqueles camundongos alegres das histórias infantis, mas, ao contrário, um ratinho melancólico, solitário, sempre enfurnado em sua toca. Diferentemente do irmão, que casou e teve quatro filhos, Benjamin não constituiu família; acho mesmo que nunca teve namorada e que seu contato com mulheres resumia-se às prostitutas da rua Voluntários da Pátria, que o conheciam e lhe faziam um preço especial. Era pobre, o Ratinho. Alfaiate competente, poderia ter ganhado muito dinheiro com a profissão. Isso não aconteceu. Em primeiro lugar, a alfaiataria tradicional foi aos poucos sendo deslocada pela indústria de confecções, de modo que ao longo dos anos ele foi perdendo a clientela, da qual faziam parte algumas pessoas conhecidas em Porto Alegre - jornalistas, políticos, jogadores de futebol, delegados de polícia. Em segundo lugar, e à medida que ficava mais velho, Ratinho começou a desenvolver teorias peculiares acerca de roupas. Sustentava, por exemplo, que a manga esquerda deveria ser mais curta do que a direita ("Assim as pessoas podem olhar mais facilmente o relógio de pulso") e confeccionava os paletós de acordo com tal idéia, o que obviamente desconcertava, e irritava, muitos clientes. Ele, porém, rejeitava os protestos, rotulando os insatisfeitos de "retrógrados" e "reacionários". É preciso acompanhar a marcha do tempo, insistia, porque a marcha do tempo é a marcha do progresso. Uma linguagem em que ecoava o seu passado de homem de esquerda, de trotskista. Mas Ratinho já não se interessava por política, pelo menos pela política partidária, essa que dá as habituais manchetes de jornal.
"Os Leopardos de Kafka", Moacyr Scliar
(Moacyr Scliar nasceu no dia 23 de Março de 1937. Morreu em 2011.)
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