terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Quero denunciar o meu pai


Quero fazer uma denúncia: o meu pai era benfiquista e morreu quando eu tinha 10 anos. Estão a ver a peça? Não sei se a Felícia Cabrita vai pegar no caso, mas justificava-se. Porque não se faz. Há que tempos que eu sou mais velho do que o meu pai, e acho mal. E o meu pai ainda me faz falta e tenho essa razão de queixa. E às vezes sinto-me órfão e já não tenho idade para isso. Na minha ideia, a Polícia Judiciária também devia fazer alguma coisa.
O meu pai era portanto benfiquista e penso que só isso é mais do que suficiente para abrir um processo. Era benfiquista e levava-me a ver os treinos do Fafe no Campo da Granja que também já não existe. Uma vez levou-me às Festas Gualterianas a Guimarães, fomos a um tasco e eu pedi-lhe para comer feijão com tripas, que nunca tinha provado, e gostei que eu sei lá. Se calhar por isso é que ainda hoje gosto tanto e faço tão bem. Outra vez trouxe-me de presente uma pistola Luger de brincar, pesada e igualzinha às dos nazis dos filmes, e gostei que eu sei lá. Não sei o que me deu na cabeça, mas cresci e não gosto de armas.
Para além de benfiquista - repito, benfiquista -, o meu pai era também novo, bonito e bom, mas suponho que isso não interesse para o processo, e era operário, músico, bombeiro e jogador de dominó. Contava-se que no dominó, jogado na mesa do canto direito para quem entrava na sala das traseiras do café Peludo, o meu pai até escondia pedras na boca para enganar parceiros e ganhar mais uns tostões para casa. Eu ia chamá-lo, bem ensaiado pela minha mãe para que ele não ficasse mal perante os amigos. "A mãe manda dizer que a comida está pronta", era o que eu dizia, uma e só uma vez, e ficava ao lado dele todo contente à espera.
É preciso que se note: o meu pai, também conhecido como Lando Bomba ou Lando da Bomba, não era só dominó. Nas festas onde a Banda de Revelhe ia tocar, o meu pai, que tocava saxofone, tinha também sociedade com o homem da roleta de feira, artesanal e viciada. Nos intervalos dos concertos, fartava-se de ganhar canivetes, cintos, saca-rolhas, tesouras, baralhos de cartas e gaitas de beiços. O meu pai era o engodo. "Mais uma para o senhor músico. Está em dia de sorte, o raisparta o músico!", gritava o homem da roleta, feitos um com o outro, a chamar o povo. No final, o meu pai devolvia tudo a troco de umas coroas ou de mais uma navalha para oferecer.
Calhava-me, de vez em quando, levar o almoço do meu pai à fábrica. Estando sol, o meu pai e outros operários comiam num terreno muito jeitoso para o efeito, a caminho do rio. Do Comporte. Sentávamo-nos numas pedras e eu adorava estar ali com o meu pai aquela meia hora. Era como se fosse um piquenique, mas eu ainda não conhecia a palavra.
O meu pai gostava muito de fazer rir a minha mãe e, de malandrice, lia-lhe o jornal metendo as expressões "pelo cu acima" e "pelo cu abaixo" entre as palavras das notícias. Se fosse hoje, ficava, por exemplo, assim: "Merkel, pelo cu acima, e Sarkozy, pelo cu abaixo, discutiram, pelo cu acima, propostas, pelo cu abaixo, para a cimeira, pelo cu acima, europeia, pelo cu abaixo". Eu e os meus irmãos, que arranjávamos sempre maneira de ouvir, escangalhávamo-nos a rir. A minha mãe repreendia o meu pai, tentava tirar-lhe o jornal das mãos, e nós ainda nos ríamos mais. Éramos pobres, mas tínhamos o riso. Éramos remediadamente felizes.
O meu pai foi para França e escrevia-nos cartas numa letra muito perfeitinha em papel quadriculado que nós líamos à nossa mãe. Nós também íamos para França, mas não tivemos tempo. O meu pai morreu, acredito que de saudades, numa véspera de Natal. No dia seguinte nasceu o Menino Jesus, disseram-me que de propósito para tomar conta na minha mãe, de mim e dos meus três irmãos. Que Deus me perdoe, mas o velhote, que nunca pôde ser, também nos teria dado um grande jeito.

16 comentários:

  1. Eu é ainda mais!... Eu sou mais velho que o meu avô.

    j.

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  2. Mas tu, caro j., é sempre mais. Portanto, não admira.
    Obrigado pela visita e pelo comentário. Grande abraço.

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  3. Obrigado, grande Nestes, pela visita e pelo abraço. Um abraço para ti também. E boa sorte!

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  4. E um forte abraço á Tia Alexandrina por ter conseguido olhar e criar-vos de uma forma ilustre, e sobretudo educada, sabe Deus atravessando as dificuldades existentes mas com o seu lindo e eterno sorriso la conseguiu ter-vos sempre felizes ao seu lado.Sobre o Tio Lando da Bomba ( que nao conheci!!! ), sempre ouvi falar bem, e sobre a cú acima e cú abaixo tambem me ri por diversas vezes com o padrinho Américo da Bomba e o meu pai, Zé da Bomba, quando recordavam essas noticias.
    Abraço Miguel

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  5. Obrigado, Miguel, pela visita e pelo comentário. Grande abraço.

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  6. Hernâni
    Eu, se fosse a ti, guardava religiosamente estes Textos maravilhosos.
    Imagino que escrevas com a mesma facilidade com que respiras, mas digo-te meu Amigo, tu metes no bolsinho das cuecas muito "escriba" deste País.
    Este Texto então é para ler e reler e reler e r.... e r....
    Grande abraço
    Gaspar de Jesus

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  7. Obrigado, Gaspar, pela visita e pelo comentário. És um exagerado, mas está bem. Levo isso à conta da amizade. Grande abraço.

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  8. Escreves como ninguem.
    Que ternura que sensiblidade.
    Nunca me enganaste!...
    Abraço
    JAC

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  9. Obrigado, JAC, pela visita e pelo comentário. Um grande abraço aí para o frio.

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  10. Vou até ali e já venho. Mas vou muito melhor depois de ler isto.
    Grande abraço
    Pedro

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  11. Grande abraço, Pedro. E um grande bem-haja pela visita e pelo comentário.

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  12. Depois de tantos elogios, já não sei que diga.
    Há uns tempos dizia-te "faz um blogue". Agora digo-te "Faz um livro". Digo "faz" e não "escreve", porque tu não escreves, meu amigo. O que tu fazes com as palavras é muito mais do que escrever. Muito mais, mesmo! Textos destes deviam fazer parte de manuais escolares. E prontos! Mais não digo, para não ficares vaidoso!
    Grande abraço,
    P.

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  13. Agora é que te fiquei a dever o almoço, caro P. Qualquer dia temos que ir visitar as minhas primas a Leça do Balio.
    Obrigado pela visita e pelo comentário.

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  14. Sabiam que o último parágrafo deste texto foi tema de conversa entre dois jovens seminaristas (coitados nem a sacristãos chegaram), pois é já lá vão 45 anos, mas mesmo assim não me esqueci.
    Obrigado Hernâni, por me teres feito viajar no tempo, até um dia destes.

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