Parecendo que não, hoje é Dia dos Enganos. Dia das Mentiras. Mas é assim: com isto da política, da guerra, das tomadas de posse, das redes sociais, dos jornais e das televisões sensacionalistas, que são todos e todas, a mentira foi sorrateiramente metida a cotio, normalizada, e agora todos os dias são dia das mentiras, embora se chamem fake news para não darem muito nas vistas. Resultado: com tanta mentira e tanto mentiroso, quase passa despercebida a velhinha efeméride residente do primeiro de Abril. Mas querem saber?
O Dia dos Enganos era celebrado em Fafe com pompa e circunstância. Era uma tradição, um acto cultural, uma devoção, uma espécie de feriado ou dia santo. Na minha terra, naquele tempo, festas assim familiares como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Pelo Entrudo, se me dão licença, eram os peidos-engarrafados no Cinema. Uma lixeira de confetes e serpentinas, mas sobretudo peidos-engarrafados, um fedor que eu sei lá mas uma grande risota, ou se calhar um grande risoto, como hoje em dia será mais fino dizer. Durante o resto do ano, no Cinema, só peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria. Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - vendiam-nas como se precisassem ou preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço. Mas o Dia dos Enganos, que foi ao que vim, e ia-me perdendo: no Dia dos Enganos saíamos para a rua, ali no Santo Velho, estrategicamente colocados entre os tascos do Paredes e do Zé Manco, e dizíamos a quem passava: - Ó senhor, olhe o que lhe caiu!...
- Foi um peido que me fugiu... - levávamos logo de resposta, que também fazia parte, e ficávamos todos contentes.
É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia...
E por falar em mentira. O peido é uma insofismável verdade da vida, tal como a morte e dois mais dois serem quatro, e quem disser o contrário é néscio. Ou mentiroso. Ou néscio e mentiroso. Ou mentiroso e néscio. E sobretudo infeliz.
- Foi um peido que me fugiu... - levávamos logo de resposta, que também fazia parte, e ficávamos todos contentes.
É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia...
E por falar em mentira. O peido é uma insofismável verdade da vida, tal como a morte e dois mais dois serem quatro, e quem disser o contrário é néscio. Ou mentiroso. Ou néscio e mentiroso. Ou mentiroso e néscio. E sobretudo infeliz.
Infelizes, sim, os que nunca ouviram o Moisés a peidar-se pelo soleno da noite, ali para os lados da Feira das Galinhas, que hoje parece-me que é um parque de estacionamento e chama-se Praceta Egas Moniz. Aquilo é que era um artista, um verdadeiro predestinado, o exímio executante em pessoa. O Moisés. Os peidos do Moisés, impõe-se que aqui se diga, eram acutilantes, poderosos como pragas, abriam mares, incendiavam sarças, esculpiam lei na pedra, abanavam os alicerces da Igreja Nova, levantada mesmo em frente, Deus nos perdoe, não sei como é que o Moisés nunca se aleijou. Os peidos do Moisés seriam hoje considerados e explorados e exportados como energia alternativa. Mas também eram mansos, melodiosos, trinados, sin-co-pa-dos, contidos, meditabundos, quase confidenciais. O Moisés solfista trabalhava, com efeito, em vários registos, um dos quais, de interpretação particularmente exigente, mezzo piano, chamava-se "rasgar chita" e costumava encerrar o concerto, com mais dois ou três encores. Os peidos do Moisés, que aceitava pedidos como crooner que se preze, eram um tremendo êxito. Faltou-lhe talvez entrar em estúdio e gravar um disco, provavelmente de janelas abertas, e não sei se isso seria tecnicamente possível. Em todo o caso, ficou a perder a posteridade, que realmente hoje em dia não sabe o que era bom.
Para rematar, é preciso que se note que o sintetizador, instrumento musical electrónico tal como actualmente o conhecemos, ainda não tinha sido inventado. Moisés era o seu próprio instrumento. No seu tempo, e no panorama artístico nacional, Moisés foi profético, vanguardista, pioneiro, radical, fracturante. Uma autêntica pedrada no charco. Uma indesmentível lufada de ar fresco, por assim dizer...
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