Por Matosinhos anda um
cego que tem duas curiosas particularidades: é benfiquista e diz
palavrões como a puta que o pariu. A cegueira poderá explicar a primeira
curiosa particularidade, mas suponho que já não conseguirá justificar a
segunda.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o
meu cego vende lotarias e ouve as notícias num transístor em altos berros e aqui atrasado,
estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho
falava da Grécia, da tentativa de primavera grega que agitou a Europa durante mais de cinco anos. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu
lho pedisse, resumiu-me imediata e cientificamente a questão: "Se se
fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que
chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o
cego à merda, ia-lhe debitando os números dos autocarros que se
aproximavam da paragem, como se estivesse a "cantar o quino", tal qual
se dizia em Fafe. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500
e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já
agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco",
expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu
estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem
em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego
chegara há três minutos. Fiquei... invisual com a desconfiança e com a
falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe
responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar
sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima,
quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao
seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e,
confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se
faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava
mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz
confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego,
que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma
desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas
intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o
500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro,
ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem,
corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não
acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu
até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão,
mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar
sozinho - e, sabeis que mais, não me arrependo!
P.S. - Publicado originalmente no dia 6 de Julho de 2015. Hoje, 4 de Janeiro, é Dia Mundial do Braille.
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