Foto Hernâni Von Doellinger |
Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todos os mas: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada... também dá uma coisa gira. Então vá..."
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.
(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País; era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada e tomou conta.)
Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". E deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein.
O 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim e é o que eu lhes estimo. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão, a fazerem de pai e mãe de uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.
(1. Texto escrito e publicado no dia 9 de Março de 2012. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.
2. Fernando Guedes, filho do fundador da Sogrape e presidente da multinacional portuguesa nas décadas de oitenta e noventa, morreu ontem, aos 87 anos.)
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