Foto Hernâni Von Doellinger |
No chão de cimento do cemitério jaz, abandonada e fria, uma senha de vez. O famigerado ticket, ou tiquê, como nos dá muito mais jeito dizer, e dá-nos sempre muito mais jeito dizer mal, não é? "Puxe", manda a senha número E29. "Puxe". Pensei: poderia dar-se o caso de ser esta a solução desenterrada por espertos sepultadores para organizar as dezenas ou centenas de defuntos que diariamente se acotovelam aos portões dos cemitérios sobrelotados, à espera de vez, à espera de vaga. (Os mortos portugueses têm geralmente medo de serem queimados vivos e, como resultado, num país com apenas 92 mil quilómetros quadrados, os nossos campos-santos rebentam pelas costuras, as campas não chegam para as encomendas.) Mas não: a coisa não é assim tão terrena, pensei melhor, isto vem, upa, upa, lá de cima. É assunto de almas e não de corpos. É. O Céu está equipado com pelo menos um dispensador de senhas de vez, tive a certeza e tinha a prova. Percebi tudo. Quer a salvação eterna? Tire o número e vá para a fila, essa é que é essa! "Mas que bizarra epifania, lá se me foram os fundamentos" - lamuriei-me, rangendo os dentes. - "Até Tu, meu Deus?! Que tristeza! Onde o negócio e a burocracia já chegaram"...
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