Hoje em dia não há respeito por nada, nem pelos velhos, nem pelos novos, nem pelos entremeados, nem pelos pais, nem pelos filhos, nem pela missa, nem pelos professores, nem pelo sagrado futebol - e daqui não vamos mais longe. As pessoas pagam fortunas para entrarem no estádio e depois não vêem o jogo, espreitam-no pelo ecrã do telemóvel, "filmam", "fotografam", viram as costas ao campo, telefonam-se, vão ao YouTube, lançam tochas, fazem selfies, mandam sms umas às outras, cadeira ao lado, revelam a emoção do momento no Facebook, mas não ligam à bola, não sabem o resultado, não sabem sequer quem são "os nossos", querem ver se aparecem na televisão, nem um palavrãozinho ao árbitro, nem um vai à merda! ao defesa-esquerdo que é uma nódoa, nem um uiiii! ao tiro a rasar poste. Que grande falta de respeito pelos intervenientes, que ausência de presença, que ignorância da tradição...
No meu tempo sabíamos como nos devíamos comportar. Da bancada (e, aqui, bancada é uma mera força de expressão), tínhamos uma palavra a dizer em campo. Havia um léxico muito próprio e rigoroso que nos era ensinado desde tenra idade, por exemplo:
- Olha a hora!...
- Está a sentar!...
- Já não chove!...
- Não jogas nada!...
- Anjinho de merda!...
- És um arrocho!...
- Vai prà tua terra, ó preto!...
- Abre-me esses olhos, ó cego!..
- Ó bandeirinha, estás fodido comigo!...
- Ó gatuno!...
- Vais levar poucas, vais!...
- Aperta com ele!...
- Dá-lhe!...
- Parte-lhe uma perna!...
- Ó filhadaputa, ó boi!...
- És muito corno!...
- Força prà frente, caralho, pá!...
- Chuta, que o guarda-redes é anão!...
- Chuta, caralho!...
- Corta, caralho!...
- Desce, caralho!...
- Sobe, caralho!...
- Corre, caralho!..
- Tira o gajo, caralho!...
- Mete outro, caralho!...
Pelo menos em Fafe era assim, primeiro no Campo da Granja e depois no "Estádio". A interacção era tão próxima, tão intensa, que, às vezes, mortinhos por fazerem parte, os próprios jogadores tomavam a iniciativa de mandar foder os adeptos, num eloquente gesto largo ou num simples chocalhar de colhões, como quem diz e diziam "ide para o caralho, caralho, correi vós, caralho"...
Na verdade, o vocativo caralho era sacramental. Dissesse-se o que se dissesse, nem que fosse "as horas?", e se, no final, se lhe enfiasse o caralho como se fosse um sufixo, estávamos obviamente a falar de futebol. Do futebol puro, do tempo em que havia educação e respeito pelo jogo. Sobretudo respeito e indesmentível educação. Até durante o intervalo, no bar, mandando vir "seis cervejas, caralho" ou "quatro malgas do novo, caralho"...
Destoava o Aníbal Carriço, isto também é verdade. O bom e querido amigo Aníbal Rodrigues, porém Carriço, que, tantas vezes farto da engonha de falsos habilidosos, gritava de cá de fora com voz pausada e grave, solenemente, de mãos na boca em altifalante: "Passa a bola! PA-SSA A BO-LA!! PA-SSA A BOO-LAA!!!..."
De acordo com os dados recolhidos pela estação sísmica da Gavieira, em Viana do Castelo, o "PA-SSA A BOO-LAA!!!..." do Aníbal ouvia-se (e eu quero tanto que ainda se ouça!), consoante para onde o vento estivesse virado, de Guimarães a Felgueiras, da Póvoa de Lanhoso a Vieira do Minho e de Cabeceiras a Celorico de Basto. Isto, se não estou em erro.
A dialéctica e a exegese futebolísticas estão modernamente aos cuidados de especialistas televisivos, de paineleiros. Mas, palavra de honra, por mais paineleiros que os paineleiros sejam: ver a bola simplesmente, desabafar umas litúrgicas caralhadas, ouvir o Aníbal, e depois ir merendar ao tasco - ainda não descobri melhor maneira de passar uma boa tarde de domingo...
P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Novembro de 2016, então sob o título "O futebol à antiga tinha a sua própria gramática". No outro dia lembrei-me do extraordinário Zé Manel Carriço, hoje apetece-me recordar o irmão Aníbal, meu ilustre camarada de jornais. O Aníbal Carriço foi um dos mais promissores jovens jogadores da AD Fafe da sua geração, mas a Guerra Colonial e uma série de balázios no lombo impediram-lhe o resto.
Destoava o Aníbal Carriço, isto também é verdade. O bom e querido amigo Aníbal Rodrigues, porém Carriço, que, tantas vezes farto da engonha de falsos habilidosos, gritava de cá de fora com voz pausada e grave, solenemente, de mãos na boca em altifalante: "Passa a bola! PA-SSA A BO-LA!! PA-SSA A BOO-LAA!!!..."
De acordo com os dados recolhidos pela estação sísmica da Gavieira, em Viana do Castelo, o "PA-SSA A BOO-LAA!!!..." do Aníbal ouvia-se (e eu quero tanto que ainda se ouça!), consoante para onde o vento estivesse virado, de Guimarães a Felgueiras, da Póvoa de Lanhoso a Vieira do Minho e de Cabeceiras a Celorico de Basto. Isto, se não estou em erro.
A dialéctica e a exegese futebolísticas estão modernamente aos cuidados de especialistas televisivos, de paineleiros. Mas, palavra de honra, por mais paineleiros que os paineleiros sejam: ver a bola simplesmente, desabafar umas litúrgicas caralhadas, ouvir o Aníbal, e depois ir merendar ao tasco - ainda não descobri melhor maneira de passar uma boa tarde de domingo...
P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Novembro de 2016, então sob o título "O futebol à antiga tinha a sua própria gramática". No outro dia lembrei-me do extraordinário Zé Manel Carriço, hoje apetece-me recordar o irmão Aníbal, meu ilustre camarada de jornais. O Aníbal Carriço foi um dos mais promissores jovens jogadores da AD Fafe da sua geração, mas a Guerra Colonial e uma série de balázios no lombo impediram-lhe o resto.
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