P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Julho de 2018, então sob o
título "Há palavras que nos beijam como se tivessem boca", segundo
Alexandre O'Neill. Desta vez rapinei o título a Ary dos Santos, em
"Poesia-orgasmo". O'Neill e Ary, curiosamente ambos publicitários e dois dos meus poetas mais preferidos. Mais preferidos, disse bem! Hoje, 31
de Julho, é Dia Mundial do Orgasmo. Tenham muitos!
sexta-feira, 30 de julho de 2021
Poesia o que tem de ser é orgasmo
A
senhora sentada à minha frente faz croché - que raro. Eu leio um livro.
O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve
no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O
metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois
refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora
sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia
um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a
cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num
misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos
Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill,
calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço
que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma
bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.
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