Foto Hernâni Von Doellinger |
Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda. Rezávamos: Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia.
(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, o consultório da rua inteira. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Centro de Saúde e passavam pelo Santo diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)
Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices", íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma para a Nanda e a maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos, era "uma cabra".
O teatro terminava, vinha a ficha técnica, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.
Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz.
Por que razão gostamos muito das mães exaustas? Porque «não sabíamos», mas agora já sabemos. Obrigado!
ResponderEliminarAbraço, caro António Daniel.
EliminarAgora fala-se muito em "mãe coragem". Era o que as nossas mães eram, só que não tinham nem sequer tempo para pensar nisso.
ResponderEliminarGaspar de Jesus
Que linda! Sempre jovem com aquele sorriso! Recordo a ansiedade dela ao sábado de manha á espera do seu Nane para passar o fim de semana e depois a preocupação que o menino dela trouxesse tudo no domingo á noite no regresso ao Porto. Mas sempre com a preocupação de estra tudo pronto a horas para que a boleia do tio Zé não tivesse qualquer atraso de responsabilidade da família do Assento. Obrigado Nane e este sim é o exemplo de uma mãe/pai/amiga/irmã que todos vocês tiveram sendo que primou pela educação desde do vosso pedir de bênção aos mais queridos assim como o ter conseguido fazer-vos um futuro lindo e respeitado. Parabéns Tia Alexandrina e um beijo deste ausente mas que se lembra bem de tudo o que de bom passamos.
ResponderEliminarObrigado, Miguel. És um bom menino. Abraço.
Eliminare eu que não tenho sítio para escrever, vai mesmo aqui...
EliminarMuito bonita e fresca que está a tua mãe, Nane, adorei vê-la
Há que tempos não vinha por aqui! Ser avó é bonito mas muuuito trabalhoso!
Este texto entrou-me pelo coração e lá ficou porque eu também faço parte dele: também convosco rezei, também dormi para lá do taipal!
A tua mãe era e é uma senhora, um ser espectacular. Enquanto que a minha dava duas carvalhadas para quem queria ouvir, a tua permanecia sempre serena, sem fazer ondas!
E assim fico para não desbobinar o filme todo!
Beijinhos a ti, a ela e a todos vós!
Beijinhos.
EliminarMiguel Deollinger
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