Amar é apanhar piriscas
Seria um casal patusco, se não fosse trágico. Desengonçados ambos,
cómicos no vestir, feiinhos graças a Deus, testo e panela emparelhados
de encomenda. Vagueiam pelas ruas de Matosinhos todos os dias, de
manhãzinha à noite, de braço dado, em andamento de procissão e olhos caídos,
passando o chão a pente fino à cata de piriscas reutilizáveis. Ele,
posto que zarolho, tem visão de longo alcance ou então algum radar que
eu não sei. Vê a beata e faz um gesto com a cabeça. Ela, em obediência
canina, dobra-se, apanha a prisca referenciada, entrega-lha e corre a
enfiar-lhe novamente o braço, até à próxima. Ele fuma e ela vai feliz.
Os dois são um filme mudo. Isso, uma fita das antigas, mas a cores.
Digo, seria um casal patusco, se não fosse trágico: quando lhe apetece, o
filhodaputa bate na mulher.
Prova de vida
- Está?
- Estou.
- Está?!...
- Estou!
- Ah!
- E aí, está?
- Estou.
- Está?!...
- Estou!
- Pronto, amanhã ligo eu.
Quando o dever chama
Nunca me tinha acontecido. Estou atolado em dívidas. Ontem fiquei a
dever doze cêntimos na padaria e hoje fiquei a dever cinquenta cêntimos
na peixaria. Por outro lado, devo dois euros (um mais um) à latinha do
Euromilhões, que é para o bacalhau do Natal. O meu nome na praça também
deve andar pelas ruas da amargura. Estou desgraçado, não sei o que
hei-de fazer à minha vida.
Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A
criatura respondeu-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações
amigas". Saudações amigas? Mas o que raio são saudações amigas?
Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Portugal anos 70, de Fátima ao Pérola Negra
Copo e vela, dez tostões. Copo e bela, um conto e quinhentos.
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