Anthony Bourdain está outra vez no Porto, noticia o jornal Público,
citando a página de Facebook da Câmara Municipal. Uma visita que vem
mesmo a calhar, na ressaca do terceiro título de melhor destino
turístico europeu conquistado pela Invicta e que o presidente Rui
Moreira tão educada e generosamente fez questão de desagradecer aos portuenses e aos portugueses que moram em Portugal.
Bourdain
está no Porto para gravar um episódio do seu programa Parts Unknown, da
CNN, e já "provou tripas", o que é extraordinário.
A Câmara do
Porto está vaidosa. Lá terá as suas razões e certamente verba
orçamentada. Sobre Bourdain, eu tenho duas coisas a dizer, e já as disse
aqui no Tarrenego!, a primeira em 2011, quando o famoso ex-cozinheiro
esteve na capital, e o título era "Bifanamente falando":
Vamos lá corrigir dois gravíssimos equívocos a propósito da passagem por Lisboa do viajante e ex-chef
Anthony Bourdain. Primeiro: apresentaram o americano como "estrela da
cozinha" e ele não é nada disso. É uma estrela de televisão e,
eventualmente, da edição livreira. Estrela da cozinha sou eu. Segundo: a
eterna problemática da bifana. Então o homem esteve há coisa de dez
anos no Porto e vai agora comer bifanas à capital? Só pode estar mal
informado.
É mesmo verdade. Muito antes desta tão badalada visita a
Lisboa, Bourdain já tinha vindo ao Porto e aos Açores. E é claro que
tinha de começar pelo Porto. Creio que foi no ano de 2001, era ele ainda
um grande maluco de argola na orelha e keffiyeh à volta do pescoço.
Desse tempo só sobrou o grande maluco. Que comeu castanhas assadas em
Santa Catarina, foi ao Majestic, passeou pela Ribeira e pelo Mercado do
Bolhão, visitou a Mercearia do Bolhão e almoçou no Rogério do Redondo:
sardinha pequena frita, cabeça de pescada cozida com todos e as
sacramentais tripas à moda do Porto.
Depois levaram-no ao Aleixo.
Provou a salada de polvo e os bolinhos de bacalhau com feijão-fradinho,
para ganhar embalo até aos filetes de polvo com arroz do mesmo que dão
fama e proveito à casa. O excelente programa televisivo de Anthony
Bourdain chamava-se então A Cook's Tour e ainda procurava naquela altura
a fórmula de sucesso que veio a afinar um pouco mais tarde,
provavelmente já em No Reservations. Receita simples: uma mistura bem
temperada de viagem e gastronomia, um estilo de apresentação irreverente
e politicamente incorrecto que cativa e, por estranho que pareça,
ensina.
Na sua estada pelo Norte, Bourdain deu também um salto aos
vales do Douro e do Tâmega, comeu bacalhau com natas, lombo de porco e
cabrito assado em forno de lenha. Teve ainda o privilégio e o incómodo
de assistir a uma matança de porco e às litúrgicas operações de
desmancho e salga, acabando o dia a jogar à bola com a bexiga do bicho,
como mandava a tradição.
E depois foi-se embora. Atenção: foi-se
embora sem antes ir à Conga comer uma bifana. Mas comeu bifanas agora em
Lisboa. Isto cabe na cabeça de alguém? As bifanas da capital sempre me
mereceram as maiores reservas e, francamente, a equipa do No
Reservations deveria estar na posse desta importante informação.
Bourdain
disse que gostou muito das lisboetas "sanduíches gordurosas de porco",
com carne "imunda e cortada em fatias finas". É uma definição elegante e
que se aceita. Mas havia de ter provado as do Porto! E não me venham
dizer que as bifanas são iguais em todo o lado. Porque não são. E não me
venham dizer que é só temperar com vinho branco e mais não sei quê (o
resto fica cá comigo). Porque não é. É com o vinho (e com o resto), mas
também com cerveja, ou para onde é que vocês cuidam que vão as sobras
dos barris e a espuma que esborda dos finos (ou imperiais) mal tirados?
Vai tudo lá para dentro, para o caldeirão da molhanga, e aqui é que bate
o ponto. Aqui é que a porca torce o rabo. É que as bifanas do Porto
chafurdam em Super Bock. E isso faz toda a diferença.
Um ano depois, em 2012, ainda mais descorçoado e pessoalmente comprometido, obriguei-me a voltar ao assunto em "Anthony Bourdain deixou-me ficar mal":
Gosto
do estilo e dos programas de Anthony Bourdain, a estrela de televisão
que acaba de se mudar de armas e bagagens para a CNN. Apresentei-o a
amigos, recomendei-o aqui no Tarrenego! E gosto tanto que, ao princípio
da noite de sábado, enquanto quase quatro milhões de portugueses sofriam
com a segunda parte do Alemanha-Portugal da RTP, eu entretinha-me a ver
na SIC Radical dois episódios do No Reservations, um dos quais dedicado
a Macau. Mas fiz mal. Afinal tive um desgosto, já não bastava o da
bola.
São episódios recentes, suponho que da temporada de 2011. No
de Macau, que é o que para o caso interessa, a certo passo Bourdain
quer saber da herança lá deixada pelos portugueses, nomeadamente na
gastronomia, e levam-no ao Restaurante Fernando. É casa de açoriano e é
ali que o ex-chef mais famoso do mundo vai provar os dois mais notáveis
paradigmas da cozinha tradicional açoriana: as tripas à moda do Porto e a
carne de porco à alentejana. Não estou a brincar. Eu nunca mais tenha
apetite se não foi assim que Anthony Bourdain referiu depois estes dois
pratos no seu programa: a dobrada e o porco com amêijoas como invenções
dos Açores.
Confundiram-no ou confundiu-se. Em qualquer dos casos,
o bom do Tony não fica bem no retrato. Vê-se que se calhar não se
prepara, dá para desconfiar que não pesquisa, que não confirma. É uma
celebridade, bebe uns copos e faz ele muito bem, fia-se nos informadores
locais, assina por baixo e faz ele muito mal. Percebo agora porque é
que comeu bifanas em Lisboa.
Curiosamente, até há quem defenda que
a carne de porco à alentejana é um prato de origem algarvia,
confeccionado, isso sim, com carne de animais alimentados no Alentejo,
mas deslocalizá-lo para os Açores é ir longe demais. É meter muita água
pelo meio. Já quanto às famigeradas tripas, fosse Bourdain aos seus
arquivos pessoais e teria facilmente descoberto que, dez anos antes,
elas lhe tinham sido apresentadas e explicadas no Porto, o local certo e
de nascença.
Salvou-se a alcatra, que também saltou para a mesa
do restaurante macaense. A alcatra, sim, pode ser entronizada como o
grande contributo da cozinha açoriana para o património gastronómico da
humanidade. A alcatra honesta, feita por mão sábia e em alguidar
experiente, a alcatra do aroma que chama, do gosto como nenhum outro, da
carne a desfazer-se na boca. A alcatra de Vitorino Nemésio, da festa e
da fartura. Da partilha, em nome do Pai, do Filho e sobretudo do
Espírito Santo.
Melhor do que a alcatra, só a alcatra de peixe.
Exactamente, alcatra de peixe. Melhor ainda: a alcatra de peixe de um
certo sítio em Porto Judeu, não muito longe de Angra do Heroísmo, na
ilha Terceira. Que mais querem saber? O Zé do Boca Negra trata os
clientes todos por tu? Trata. Dá raspanetes à freguesia? Dá, mas é a
única borla. É sportinguista? É, coitado. Fala pelos cotovelos? Fala,
fala. Tem quatro. Quatro em cada braço. E a alcatra de peixe? É um
fenómeno ainda maior.
P.S. - Texto publicado no dia 13 de Fevereiro de 2017, sob o título "Bourdain voltou ao Porto, talvez desta vez acerte". Anthony Bourdain morreu hoje.
Disse tudo. Além disso, também adoro a Alcatra.
ResponderEliminarEu faço-a cá em casa, mas não é a mesma coisa. O segredo é o alguidar, e o meu ainda não está treinado. Na Terceira há quem venda alguidares experientes e famosos, usadíssimos, por pequenas fortunas. E são muito disputados nos testamentos. Com estas e com outras, deram-me cá umas saudades!...
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