sábado, 31 de maio de 2014

Murilo Rubião 2

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?
A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo - o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado.
A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular uma palavra.
Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente.

A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.

"O Pirotécnico Zacarias", Murilo Rubião

(Murilo Rubião nasceu no dia 1 de Junho de 1916. Morreu em 1991.)

A ver navios 24

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 30 de maio de 2014

O nojo do PS

Depois da cagada que fez no Governo, o PS devia guardar um longo período de nojo em relação ao País e só voltar a aparecer em público quando tudo estivesse completamente esquecido: isto é, daqui a três ou quatro gerações. A regeneração ou refundação do partido devia ser feita na intimidade socialista, longe dos holofotes e dos microfones, e até os congressos deviam ser à porta fechada, quanto mais não fosse por uma questão de saúde pública.
Mas eles não resistem, são vaidosos de mais e inteligentes de menos para nos largarem a braguilha. E têm à disposição três canais nacionais de telenotícias 24X24 que também precisam deles como de pão para a boca para enchouriçarem "apontamentos de reportagem" e "comentários em cima da hora" que fazem tanta falta ao nosso quotidiano como uma viola num enterro. Estão bem uns para os outros.
Este fim-de-semana deram-nos o espectáculo da entronização de António José Seguro. Um triste espectáculo. O escusado congresso do PS teve tanto sumo que, depois de exaustivamente espremido pelos especialistas de serviço, ficou reduzido a um tal episódio da cadeira, envolvendo Seguro e António Costa, o ponto alto de um evento que terá servido apenas para marcar a diferença fundamental e definitiva entre o actual líder socialista e o outro, o que foi embora: ao contrário de Sócrates, este agora parece que gosta dos jornalistas...
E o País sossegou.

(Texto escrito e publicado no dia 12 de Setembro de 2011. E querem dar-nos mais do mesmo.)

Aqui há gato 5

Foto Hernâni Von Doellinger

No tempo em que os animais falavam

                                                                                            Foto GASPAR DE JESUS

Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam pancada - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios jornalistas. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões generalistas, exigem tratamento de primeiro-ministro. São outros tempos.

Revista do Senhor de Matosinhos


Publicação da Câmara de Matosinhos dedicada a uma das maiores romarias de Portugal. Pode ser vista aqui.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Vida de cão 50

                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger

Wenceslau de Moraes 2

Passando, em horas de ócio, junto dos campos de chá, dos quais sinto prazer em acercar-me, palestro com os aldeões e aprendo noções várias, respeitantes à delicada planta. Não pode ser transplantada, nem se multiplica por estaca ou por enxerto, só por sementeira se propaga. Os países quentes, como os países frios, são-lhe nocivos; prospera nos climas temperados, nos sítios lavados de ar e luz, vizinhos dos cursos de água, convindo um ligeiro declive ao solo de cultura. Os arbustos são dispostos em renques paralelos, de norte a sul, para que o sol lhes bata em cheio desde pela manhã até à noite; as plantas mais cuidadas reclamam na Primavera grandes toldos de palha, que abriguem das geadas as tenras folhas dos rebentos. Durante o primeiro ano, dispensam adubos, que depois se aplicam em períodos frequentes. A guerra aos vermes, aos insectos, exige zelos incessantes. No fim de quatro anos, já o arbusto se presta à primeira colheita; mas são as velhas plantas, de cem anos, de duzentos anos, as que melhor produzem.

"O Culto do Chá", Wenceslau de Moraes

(Wenceslau de Moraes nasceu no dia 30 de Maio de 1854. Morreu em 1929.) 

Fafe discute o turismo

Foto Hernâni Von Doellinger

"O turismo em Fafe" será tema para um debate a realizar no próximo dia 7 de Junho, sábado, pelas 21h30, no Club Fafense. É mais uma iniciativa do Club Alfa, dinamizada, como sempre, pelo irrequieto Pedro Sousa. Participam também Abel Castro, Alberto Baptista, António Daniel, Carla Paredes Castro, Carlos Afonso, Jesus Martinho, Luís Carvalho, Miguel Summavielle e Ricardo Gonçalves.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Feira Mostra de Paredes de Coura 2014


De amanhã até domingo, aí está a edição número 21 da Feira Mostra de Produtos Regionais do Alto Minho, no centro da vila de Paredes de Coura. Ver programa aqui.

Vida de cão 49

Foto Hernâni Von Doellinger

O Despertar da Primavera


A obra-prima de Frank Wedekind, no palco do TUP (Teatro Universitário do Porto) - Travessa de Cedofeita, 65. De 5 a 21 de Junho, de terça a domingo, às 22 horas. Mais informação, aqui.

José Craveirinha

Quero ser tambor

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
Deixa-me ser tambor
Corpo e alma só tambor
Só tambor gritando na noite quente dos trópicos.
 

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.
 

Nem nada!
 

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.
 

Oh velho Deus dos homens
Eu quero ser tambor
E nem rio
E nem flor
E nem zagaia por enquanto
E nem mesmo poesia.
 

Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
Dia e noite só tambor
Até à consumação da grande festa do batuque!
 

Oh velho Deus dos homens
Deixa-me ser tambor
Só tambor!


José Craveirinha

(José Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922. Morreu em 2003.)

Leva-me contigo, Willy Fog

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 27 de maio de 2014

Azul e branco para sempre

                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

O FC Porto tem disto tão único: quem por lá passa fica com o azul e branco colado à pele. Viram o João Pinto, no sábado, a celebrar em lágrimas o título de andebol do clube do seu coração? O João Pinto do futebol, o capitão, o genuíno número dois, o tal que, conta a lenda, chutava com o pé que tinha mais à mão e só dava prognósticos no fim do jogo. Claro que não viram - vi eu. E emocionei-me também, por causa dele.
E ontem gostei de ver o Fernando Couto fazendo a corridinha matinal vestido como manda a sapatilha. De azul e branco. Da Foz a Matosinhos e vice-versa. O Fernando deixou o Dragão em 1994, trotou mundo, pendurou as botas em 2008, foi depois dirigente e treinador onde calhou, mas o FCP, vê-se, está-lhe onde deve estar, no sítio onde o sangue corre.
A ligação é tão umbilical que, na ida para lá, Fernando Couto corria na companhia de um indivíduo que era a cara chapada de Antero Henrique, CEO da SAD do FC Porto - e não digo mais nada.

A ver navios 23

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 25 de maio de 2014

Livro de reclamações

Viram-me a entrar na Escola Augusto Gomes, maila minha mulher, e atiraram-me logo à cara - afinal tu também votas, ó palhaço, que dizes que não votas.
Estão enganados. A questão é esta: eu realmente não voto. Não acredito nestes gajos, não gosto destes gajos, e não lhes dou emprego. Fui apenas assinar o livro de reclamações. De cruz. E parece que não fui o único.

Não que eu não seja palhaço. Sou, com muito gosto e por ambição antiga, mas isso é outro assunto. E já agora: afinal quem ganhou? O Real Madrid ou o Atlético do mesmo? Ou ganharam os dois mais o trio de arbitragem que actualmente não sei quantos são?
Ganharam todos, não foi?

sábado, 24 de maio de 2014

Lugares-(in)comuns 83

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Profundo 22

- Europa. E tu?
- Eu? Frates.

Vida de cão 47

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

Ferreira de Castro 2

Fato branco, engomado, luzidio, do melhor H. J. que teciam as fábricas inglesas, o senhor Balbino, com um chapéu de palha a envolver-lhe em sombra metade do corpo alto e seco, entrou na "Flor da Amazónia" mais rabioso do que nunca.
Ter andado de Herodes para Pilatos, batendo todo o sertão do Ceará no recrutamento dos tabaréus receosos das febres amazonenses e tranquilos sobre o presente, porque há anos não havia secas, e afinal, depois de tanto trabalho, de tantas palavras e canseiras, fugirem-lhe nada menos de três! Que diria Juca Tristão, que o tinha por esperto e exemplar, quando ele lhe aparecesse com três homens a menos no rebanho que vinha pastoreando desde Fortaleza? E o Caetano, que ambicionara aquele passeio por conta do seringal e assistira, roído de inveja, a sua partida? Rir-se-iam dele... Quase dois contos atirados por água abaixo!
No topo da escada, esbatendo-se na penumbra, surgiu o abdome e logo o rosto avermelhado de Macedo, proprietário da "Flor da Amazónia".
- Então, senhor Balbino?
- Nada!
- Sempre falou com o chefe da Polícia?
- Falei com o secretário.
- E que disse ele?
- É tudo uma malandragem! Ah, bom tempo em que havia relho e tronco! Então, esta canalha andava mesmo metida na ordem! Hoje, não se prende ninguém por dívidas e dizem que já não há escravos. E os outros? Os que perdem o que é seu? Vem um homem a fazer despesas, a pagar passagens e comedorias e até a emprestar dinheiro para eles deixarem as mulheres, e depois tem-se este resultado! Lhe parece bem? Ora diga, senhor Macedo: lhe parece bem?

"A Selva", Ferreira de Castro

(Ferreira de Castro nasceu no dia 24 de Maio de 1898. Morreu em 1974.)

Première

Foto Hernâni Von Doellinger

Ora cá está ele, enfim. Iluminou-se esta noite. Para mim, sempre o melhor reclame das grandes romarias portuguesas. (Este ano com um pequeno falhanço próprio  e noite  e estreia, mas amanhã já estará tu o certamente resolvi o.) Importante é: Senhor de Matosinhos, de hoje até 15 de Junho, sempre a bombar. Mais informação e programa completo, aqui.

Medicamentos sem papéis

A notícia é de ontem: cinco mil medicamentos foram apreendidos à chegada a Portugal. Vinham sobretudo para a noite e para o sexo. Tanto quanto se sabe do que realmente se passou, a nossa autoridade puxou-os à parte e perguntou-lhes - os papéis? E eles não tinham. Eram ilegais, com efeito, e vão ser expulsos do território nacional. Alegadamente.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Sou esbraguilhado e não sabia

Esbraguilhado, de acordo com a definição dicionária, é o tipo que "tem a braguilha desabotoada". As braguilhas há que anos não são de botões, mas não posso negar que umas quantas vezes já saí de casa com a ferramenta a arejar, esquecido completamente de puxar o fecho-éclair para cima, por pressa ou por idade - ainda não cheguei a uma conclusão. No entanto, foram acasos, excepções, eu morra aqui se não é verdade. Nesse sentido, portanto, não me vejo como um genuíno esbraguilhado.
Porém. Esbraguilhado também quer dizer o tipo que anda "com fralda da camisa saída". E aqui sou eu, todo e completo: esbraguilhado de corpo inteiro, que não meto as fraldas para dentro há mais de quarenta anos, nem nos dias raros e cerimoniosos de uso de casaco. Jamais.

Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, até ontem e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças à vida. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário.
Depois tive a sorte do professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.

Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas, tende a escrever asneiras. E eu não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri ontem a palavra esbraguilhado e gostei dela. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras, que é para o que o Tarrenego! me serve.

Lugares-(in)comuns 82

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 19 de maio de 2014

2-0 para Guilherme Pinto

Parecia-me impossível mas vai haver antenas no "jardim" em frente ao mar de Matosinhos, mesmo debaixo dos narizes de gente de dinheiro e posição que as não queria. Os trabalhos recomeçaram ontem, e eu tenho de dar a mão à palmatória: Guilherme Pinto não pára de surpreender-me, e algumas vezes pelas melhores razões.
Aquilo é Matosinhos-Sul, e o empreendimento (creio que é assim que se diz) será muito do tipo do not disturb. Quanto ao "jardim", é um espaço de uso público, cagatório canino do mais alto coturno.
Ora bem. Em 2010, antes da zanga com o Rato, Guilherme Pinto meteu lá no "jardim" o comício da rentrée do PS do amigo Sócrates. Os moradores espernearam, fizeram luto, mexeram os cordelinhos nos jornais, mas tiveram que engolir a pastilha. Agora o presidente da Câmara enfia-lhes as antenas pelas goelas abaixo. 2-0. É de homem. E os bairros agradecem.

(Ler mais em Que é da antena? e em Matosinhos: quem pode, pode)

Vida de cão 45

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 18 de maio de 2014

Mário de Sá-Carneiro 2

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
        Pilar da ponte de tédio
        Que vai de mim para o Outro.


"Indícios de Oiro", Mário de Sá-Carneiro

(Mário de Sá-Carneiro nasceu no dia 19 de Maio de 1890. Morreu em 1916.)

Vida de cão 44

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

O benfiquismo já teve melhores dias

O Benfica de Lisboa ganhou ao Rio Ave de Vila do Conde por 1-0. O jogo foi em Oeiras e eu moro em Matosinhos. Anda por aí um automobilista a apitar até que a voz lhe doa. Um. Das duas, uma: ou é o último benfiquista das redondezas ou então o Pedrouços, que por acaso é na Maia, subiu de divisão. Disse o meu filho.

Meia dose de xenofobia

A chinesinha descia a rua em direcção à praia, e levava o cão pela trela. Achei aquilo tão esquisito. Como se eu levasse a passear um frango de aviário.

sábado, 17 de maio de 2014

Aqui há gato 4

Foto RUI BASTOS

Ò tempo que eu não via um guarda-redes de boné


Ei, ò tempo que eu não via um guarda-redes de boné!, disse eu quando olhei, admito que com algum fastio, para o Holanda-Equador que estava pendurado na televisão. Mas imediatamente aqueloutrei: pois, se os jogos agora são à noite, para que é que o guarda-redes precisa do boné se não for também treinador do Paços de Ferreira? E assim acrescentei mais uma às duas razões que já tinha para não ir ao futebol.
Deixei de ir à bola porque os clubes agora são sades e porque os adeptos agora são claques. E também - foi a revelação de há pouco - porque os jogos passaram para a hora do cinema. Futebolzinho é à tarde, é à tarde, é à tarde - as televisões que se arresolvam, mas o futebolzinho é à tarde. Ao sol. Outra coisa eram as famosas quartas-feiras europeias, nocturnas por definição, mas até isso aldrabaram: as quartas-feiras europeias agora vão de terça a quinta, e não há fígado que aguente.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Ele há caldeirada de peixe e caldeirada de peixe

                                                          Foto Hernâni Von Doellinger

A diferença é que uma caldeirada de peixe custa 39 euros e a outra caldeirada de peixe custa 39 euros.

Ronald de Carvalho

... E o veleiro partiu... para os longes, no Poente,
e o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio...
- A Saudade da luz e a Saudade da gente,
A invernia do olhar, e os nervos sem estio -

E eu me deixei ficar, contemplativamente,
olhos cheios de Sol, de outro flavo e sadio...
- Na fluida limpidez da tarde transparente
Setembro havia posto um colorido frio...

E o veleiro partiu, de velas soltas, no alto,
para a glória do Mar, na paisagem violeta
do Outono, entre calhaus e cimos de basalto...

E, com ele, foi, também, panda, num desvario
de asas brancas, para o ar, uma última goleta...
- E o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio...

"Os Sonetos Íntimos", em "Luz Gloriosa", Ronald de Carvalho

(Ronald de Carvalho nasceu no dia 16 de Maio de 1893. Morreu em 1935.)

Senhor de Matosinhos 2014


Festas da Cidade de Matosinhos. De 23 de Maio a 15 de Junho. Mais informação e programa completo, aqui.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Que é da antena?

Os trabalhos para a instalação de uma antena de telecomunicações num "jardim" em frente à marginal de Matosinhos estão parados há oito dias, fez ontem exactamente. "Na sequência de uma preocupação manifestada por alguns munícipes" e depois de um dramático apelo "à tranquilidade dos matosinhenses", a Câmara de Guilherme Pinto deixou o buraco aberto à espera de um parecer dos sábios Siza Vieira e Souto Moura. A questão já não é portanto de saúde e passou a ser só de estética.
A autarquia pôs aspas na antena. Eu ponho as aspas no "jardim". É um relvado geralmente mal tratado e reservado a cagalhotos de cão no dia-a-dia. Cães de marca, é preciso que se note. Lembram-se decerto que eu disse que a antena iria ser colocada "mesmo debaixo do nariz de gente de dinheiro e posição". Com efeito.
Não sei qual vai ser o futuro do buraco que Guilherme Pinto arranjou. Suspeito, no entanto, que não vai passar disso, de um buraco a tapar - independentemente da infalível opinião que há-de vir dos dois supra-sumos da arquitectura nacional, e que até nem me custa muito a adivinhar qual será. Antenas ali, não me cheira. Manda quem pode e obedece quem deve. E eu parece-me que já disse que aquele é um sítio de "gente de dinheiro e posição".

E também me falta saber para que bairro social é que o extraordinário melhoramento vai ser deslocalizado.

Lugares-(in)comuns 79

Foto Hernâni Von Doellinger

Penáltis

É a velha história: quem com ferros ferros, com ferros ferros.

Fim-de-semana gastronómico em Fafe


Decorre integrado no programa das Feiras Francas de Fafe, arranca depois de amanhã, sexta-freira, e vai até domingo. Informação disponível aqui e aqui.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Os charters de Cavaco Silva

Há três anos Paulo Futre prometia charters de chineses para Portugal. O país riu-se como um perdido, e eu também. Ontem Cavaco Silva comprometeu-se a promover a criação de uma ligação aérea directa entre a China e Portugal para que os tais charters cá cheguem. O país está distraído, e ri-me eu.
Ficou provado: Paulo Futre é um visionário, peço desculpa por não ter percebido antes. Afinal o que Futre diz escreve-se. E copia-se. Haja portanto respeito pelo cromo, e em tempo útil. Três anos é uma eternidade e por estas e por outras é que Galileu ia lerpando. O ex-futebolista anda agora na televisão a publicitar umas pastilhas diz ele que muito jeitosas para a falta de tesão. Se Belém tem alguma coisa a declarar sobre o assunto, que o faça já ou então que se cale para sempre.

P. S. - Lamento o desconsolo de quem contava que aqui me atirasse à faustosa embaixada que acompanha Cavaco Silva na visita à China: só empresários são mais de cem, um elefante, dois leopardos, uma pantera, perus raros e alguns papagaios - segundo as crónicas. Mas no Tarrenego! só falo de coisas sérias.

Vida de cão 43

Foto Hernâni Von Doellinger

Porque Portugal não tem hipóteses na Eurovisão

Sempre gostei de ir a Ponte de Lima por causa do arroz de sarrabulho e dos bigodes das mulheres. Mulheres feias é ali. Feias e bigodudas. Basta um raio de sol espreitar por entre as nuvens e elas saltam todas não se sabe donde para as bordas do rio a arejar as carantonhas e respectivas piaçabas. Palavra de honra, é um espectáculo digno de ser visto. Comprar um cartucho de jornal cheio de castanhas assadas e comê-las, ainda quentes, enquanto observamos o mulherio, picadeiro acima, picadeiro abaixo, como num desfile de moda mas para bigodes fêmeos, nove pontos para aquela, treze para a das suíças, há lá melhor maneira de passar um pedaço de tarde! Não sei o que a bela vila alto-minhota tem, mas é assim que as coisas são.
Cuidado. Antes de me soltarem os cães, façam o favor de perceber que eu não disse que as mulheres limianas são bigodadas e feias. Não. O que eu digo é que, aos fins-de-semana e feriados, elas, as bigodadas e feias, concentram-se todas ali, à beira-Lima, como se fosse um congresso de camafeus ou um concurso de feieza. Numa dessas ocasiões, eu próprio fui confundido com a cantadeira de um rancho folclórico derivado às minhas barbas. De resto, não sei de onde elas vêm, nunca perguntei.

Anteontem, aproveitando o último feriado de Todos-os-Santos das nossas vidas, fui a Ponte de Lima e tive um desgosto. A vila mais antiga de Portugal, Ponte de Lima monumental e histórica, está mais pobre. As mulheres continuam particularmente feias, honra lhes seja, mas deitaram abaixo os bigodes. Sentei-me no banco do costume, junto à vendedeira de castanhas, queimei os dedos a comê-las, mas bigodes de mulheres, que era ao que eu ia, nem um para amostra. É lamentável. Os cremes depilatórios estão a dar cabo do nosso património.
Não sei se volto a Ponte de Lima. Ainda por cima, o arroz de sarrabulho também não estava grande coisa. Mas as castanhas eram bem boas.

(Texto escrito e publicado no dia 3 de Novembro de 2011, então sob o título Já não há mulheres com bigode)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Lugares-comuns 142

Foto Hernâni Von Doellinger

Lima Barreto 2

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do famoso Calado e das suas polcas, uma das quais - "Cruzes, minha prima!" - é uma lembrança emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento - delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma importância. Voltou a ser novamente plebeu.
Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.

"Clara dos Anjos", Lima Barreto

(Lima Barreto nasceu no dia 13 de Maio de 1881. Morreu em 1922.)

A ver navios 22

Foto Hernâni Von Doellinger

Raimundo Correia

As pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

"Sinfonias", Raimundo Correia

(Raimundo Correia nasceu no dia 13 de Maio de 1859. Morreu em 1911.)

domingo, 11 de maio de 2014

E se os sogros fossem... dar uma volta

E aquela mania dos sogros escolherem o sexo dos filhos dos filhos? "Ai, não, nós queríamos uma menina, mas os pais dela querem um menino, não sabemos como vai ser se for menino, mas nós era menina, menina". Afino, fico piurso.
São estes tempos: já que pagam, os sogros acham que têm direito. Não querem gato por lebre. É menino, é menino; é menina, é menina. O resto é incompetência, competentemente penalizada em testamento a haver.
Ora, eu sempre defendi (e não sei se isto vai soar bem) que cada um deve fazer filhos com a sua própria pila. Portanto, nestas ocasiões eu costumo dizer "Então os sogros que os façam", aos meninos e às meninas, e que deixem a Natureza correr e a rapaziada em paz. "Que os façam, e por catálogo".
Foi o que eu disse ontem à noite a uns queridos vizinhos, avós de fresco, à porta do elevador. Contaram-nos a novidade, estavam orgulhosos, felizes porque lhes saiu a menina em que apostaram, para desgosto dos outros, que faziam figas por um menino. E eu saí-me com a rábula do costume, "Então os outros que o façam", a ironia não foi muito bem compreendida e se calhar perdi os únicos condóminos que me falavam.

sábado, 10 de maio de 2014

Os melhores anos da minha vida

Foto FOTOGRAFIA ALIANÇA

Naquela altura eu não sabia que aqueles eram os melhores anos da minha vida. Não se iludam com o aspecto formal, cinzento, tão manhã submersa. Tão coninhas. Não éramos nada disso. Éramos rapazes espertos e gandulos, mas tínhamos mestres. Sorte a nossa. Sorte minha. Devo-lhes tudo.

Camilo José Cela 2

- Não perder a oportunidade, já estou farta de o dizer, é o mais importante.
Dona Rosa vai e vem por entre as mesas do café, tropeçando nos clientes com o seu formidável traseiro. Dona Rosa diz com frequência chiça e lixaram-nos. Para Dona Rosa, o mundo é o seu café e tudo o mais em redor dele. Há quem diga que os olhos da Dona Rosa brilham quando chega a Primavera e quando as raparigas começam a andar de manga curta. Eu creio que tudo isto são mexericos: Dona Rosa nunca teria dado nada a entender. Nem com Primavera nem sem ela. À Dona Rosa agrada-lhe, nem mais nem menos, arrastar as suas arrobas por entre as mesas.

"A Colmeia", Camilo José Cela

(Camilo José Cela nasceu no dia 11 de Maio de 1916. Morreu em 2002.)

Lugares-(in)comuns 78

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Quando o homem é derrotado pelo motociclo

Um dos títulos mais useiramente infelizes da nossa comunicação social são dois: "Fulano venceu o cancro" e "Sicrano derrotado pelo cancro". Os heróis e os falhados. Ultrapassa-se o cancro simplesmente porque se faz muita força, morre-se de cancro por indecente e má figura.
Ora, a realidade lá fora dos teclados e da tabela de vendas não é assim. Sobreviver ao cancro está muito pouco nas mãos de quem o padece. Depende de tantas e tantas variáveis exteriores ao doente e à "coragem" do doente que só vou citar duas, dinheiro e médicos, e nada é garantido, e tudo se resume, no final, a tempo, sorte ou azar. Não há fortes e fracos. Não há vencedores nem vencidos nisto do cancro, assunto sério. É a vida.

Imagine-se o ridículo que seria levar o jargão jornalístico até às últimas consequências e, em casos de atropelamento, escrevermos, elogiando os sobreviventes, "Fulano venceu a motorizada", aos pontos obviamente, ou, injustiçando os mortos, "Sicrano derrotado pelo motociclo". Horrível, não é? Pois com o cancro também.

Lugares-(in)comuns 77

Foto Hernâni Von Doellinger

Feiras Francas de Fafe 2014


De 15 a 18 de Maio - quinta-feira a domingo da próxima semana. Programa e outra informação, aqui.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Big Brother is watching you

Foto Hernâni Von Doellinger

Ascenso Ferreira 2

Predestinação

- Entra pra dentro, Chiquinha!
Entra pra dentro, Chiquinha!
No caminho que você vai
você acaba prostituta!

E ela:
- Deus te ouça, minha mãe…
Deus te ouça…


"Xenhenhém", Ascenso Ferreira

(Ascenso Ferreira nasceu no dia 9 de Maio de 1895. Morreu em 1965.)

Matosinhos: quem pode, pode

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

Uma antena de telecomunicações vai ou ia ser ser instalada no jardim em frente à marginal de Matosinhos, mesmo debaixo do nariz de gente de dinheiro e posição. Os trabalhos começaram na segunda-feira. Antecipando eventuais protestos de quem pode pagar a bons advogados e costuma dar bons empregos, ou, vamos admitir, "na sequência de uma preocupação manifestada por alguns munícipes", o posto de comando da Câmara Municipal saiu-se ontem com uma inusitada "Informação à população", a qual termina, dramaticamente, apelando "à tranquilidade dos matosinhenses".
A autarquia diz que a antena tem aspas. É quase uma escultura, objecto de design urbano utilizado com enorme sucesso "em várias capitais europeias", e que, para além do mais, vai muito bem com o local. A Câmara de Guilherme Pinto "assegura que não está em causa qualquer problema de saúde pública".
E eu desta vez acredito, mas acredito mesmo. Se a coisa fosse feia e provocasse doenças, seria certamente colocada no Bairro da Biquinha. Por exemplo.

Em todo o caso, as "obras" estão paradas há dois dias...

E havia necessidade?

Foto Hernâni Von Doellinger

Vândalos, alanos, suevos ou visigodos? Tenho uma quase perfeita ideia sobre o que terá acontecido, mas fica cá comigo. Porque não passa de uma teoria, hipótese académica. Quem quiser ver como era antes da intervenção nocturna, pode espreitar aqui.

Lugares-(in)comuns 76

Foto Hernâni Von Doellinger

As Palavras nas Dunas do Tempo


Artur Ferreira Coimbra lança amanhã o seu mais recente livro - "As Palavras nas Dunas do Tempo - 35 anos de Poesia". Sessão na Sala Manoel de Oliveira do Teatro-Cinema de Fafe, a partir das 21h30, com apresentação a cargo de César Freitas, professor do Instituto de Estudos Superiores de Fafe.
De acordo com o autor, a obra "condensa" em 320 páginas "a maior parte" da sua poesia, desde o trabalho inicial, "O Prisma do Poeta", de 1978, até ao final de 2013.

Vida de cão 42

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 7 de maio de 2014

António José da Silva

Que delito fiz eu para que sinta
o peso desta aspérrima cadeia
nos horrores de um cárcere penoso
em cuja triste, lôbrega morada
habita a confusão e o susto mora?
Mas se acaso, tirana, estrela ímpia,
é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.
Mas se a culpa que tenho não é culpa,
para que me usurpais com impiedade
o crédito, a esposa e a liberdade?

"Anfitrião ou Júpiter e Alcmena", António José da Silva

(António José da Silva, "o Judeu", nasceu no dia 8 de Maio de 1705. Morreu em 1739.)

terça-feira, 6 de maio de 2014

Este ano também vai haver 16 de Maio (acho eu)

Suponho estar em condições de garantir que este ano vai haver 16 de Maio. Os 16 de Maio são as Feiras Francas de Fafe e costumam começar a 15. Isto é: daqui a oito dias. Ainda não há notícias, nem há programa, portanto está tudo a correr dentro dos conformes. A Câmara Municipal, a Naturfafe e a Cofafe - tradicionais co-responsáveis pela realização do evento - são entidades experimentadíssimas nesta maneira incompetente de (não) promover a coisa. Mas é como digo: suponho estar em condições de garantir que este ano vai haver 16 de Maio. Pelo menos no calendário.

Vida de cão 41

Foto Hernâni Von Doellinger

Luiz Pacheco 2

Somos gente pura: os mais novos não sabem o que é a promiscuidade, a minha rapariga se vir a palavra escrita deve achá-la muito comprida e custosa de soletrar: pro-mis-cu-i-da-de (pelo método João de Deus, em tipos normandos e cinzentos às risquinhas, até faz mal à vista!). A promiscuidade: eu gosto. Porque me cheira a calor humano, me sobe em gosto de carne à boca, me penetra e tranquiliza, me lembra - e por que não ?! - coisas muito importantes (para mim, libertino se o permitem) como mamas, barrigas, pele, virilhas, axilas, umbigos como conchas, orelhas e seu tenro trincar, suor, óleos do corpo, trepidações de bicharada. E a confusão dos corpos, quando se devoram presos pelos sexos e as bocas. E as mãos, que agarram e as pernas, que enlaçam. Máquinas que nós somos, máquinas quase perfeitas a bem dizer maravilhosas, inda que frágeis, como não admirar as nossas peças, molas e válvulas e veias, todas elas animadas por um sopro que lhes parece alheio mas sai do seu próprio movimento, do arfar, dos uivos do animal, do desespero do anjo caído. E a par disso que é o trivial, que é o que cada um, tosco ou aleijado, tem para dar e trocar, fatalidades, na sua mísera ou portentosa condição de bicho, a beleza, que é a surpresa, a harmonia das formas, que é a excepção e a inteligência, que é a reminiscência dos deuses. Ao lado do bicho, natural e informe, a estátua - onde a carne se afeiçoou em linhas puras, sabe-se lá porquê, por quem e para que fim (sim, o fim sabemos e é o que irmana todos na caveira desdentada horrível a rir-se muito da beleza e dos olhos que a gozavam, da estátua viva e das mãos que a percorriam demoradamente, enlevadas). A curva flutuante de um seio de donzela, a provocação que é a anca do efebo ou da ninfa, tão parecidas que se confundem; a amplidão do olhar e os seus mistérios, esquivas e trocadilhos - íntima largueza do reino da alma que jamais encontrarás seu fundo, e a cor álacre arrebatada duma risada; os passos, o cetim da pele, o emaranhado dos pêlos do púbis, e a alegria loira duma cabeleira solta, desmanchada nos abraços, saindo triunfal duma cama semidesfeita.

"Comunidade", Luiz Pacheco

(Luiz Pacheco nasceu no dia 7 de Maio de 1925. Morreu em 2008.)  

A ver navios 21

Foto Hernâni Von Doellinger

Pinto da Costa em casa de Jorge Mendes 2

16h50. Pinto da Costa sai da casa-forte do superagente de futebol Jorge Mendes, algures na zona da Foz rica, Porto com vista para o mar. Sai sozinho, ao volante do BMW presidencial. (Faltam três horas para o jogo com o Rio Ave e uma eternidade para o fim de uma época lastimável a todos os títulos - e o pior ainda poderá estar para vir.) Anda cerca de cinquenta metros, dá delicadamente a volta e regressa à mansão dos três milhões. Manobra de reconhecimento do terreno, só para confirmar que não há mouro na costa? Talvez. Os portões de Shangri-La abrem-se de novo, as câmaras de vigilância são mais que as mães e estão atentas. Lá dentro, de quem se terá "esquecido" o presidente do FC Porto?

Foi assim que escrevi no dia 21 de Abril de 2014, às 17h34. Na minha infinita ingenuidade, pensei que tinha deixado um boa pista aos jornalistas com emprego, mas enganei-me. Ninguém me ligou para confirmar e desenvolver, ninguém ligou ao que eu vi e contei. Ninguém quis saber mais, porque trabalhar faz calos. Compreendo-os.
Passaram-se quinze dias. Dizem agora que Julen Lopetegui, "apontado" como futuro treinador dos Dragões, andou por aí e até viu o FC Porto-Rio Ave no camarote de Jorge Mendes. E esta manhã Pinto da Costa marcou uma conferência de imprensa para daqui a 50 minutos. Os jornalistas com emprego irão todos a correr: gostam da papinha feita, e que lha dêem à boca.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Juntaram-se os três à esquina

Foto Hernâni Von Doellinger

As Palavras nas Dunas do Tempo

Artur Ferreira Coimbra lança o seu mais recente livro na próxima sexta-feira, dia 9 de Maio, na Sala Manoel de Oliveira do Teatro-Cinema de Fafe. A obra, com o título "As Palavras nas Dunas do Tempo - 35 Anos de Poesia", será apresentada por César Freitas, professor do Instituto de Estudos Superiores de Fafe.
De acordo com o autor, o livro "condensa" em 320 páginas "a maior parte" da sua poesia, desde o trabalho inicial, "O Prisma do Poeta", de 1978, até ao final de 2013.

domingo, 4 de maio de 2014

Cozido à moda de Coura

Foto FERNANDO VELUDO/NFACTOS

Aviso com tempo. O próximo é fim-de-semana gastronómico em Paredes de Coura. Sexta, sábado e domingo - dias 9, 10 e 11 de Maio. Depois da truta, este ano é o cozido que vai ao altar. A viagem vale a pena e é mais perto e bom caminho do que pode parecer à primeira vista. Coura é um oásis e uma festa, à mesa ou na redondeza: há o cozido e a truta, mas também a feijoada, o bacalhau ou o cabrito. As pataniscas. Para gentios que não gostem de comer, há bombos e concertinas, sorrisos e beijinhos. Para os ouvidos mais delicados, recomendo dois passos ao lado, não são precisos mais, estamos já no monte, e que se ouça esse silêncio, e que se sinta esse ar, e que se feche os olhos e se veja o paraíso inteiro à nossa volta. Depois guarde-se tudo na mala do carro - o silêncio, o ar e o paraíso -, com cuidado para não partir, e traga-se para casa. As autoridades não costumam implicar e a mala atestada costuma dar para uma semana.
Ainda por cima há Aquilino. Aquilino Ribeiro, o das "Terras do Demo", que gostava do que era bom e sabia o que era bom. Pelava-se por bolinhos de bacalhau (pastéis de bacalhau, se lido em Lisboa), adorava carne de porco em vinha-d'alhos, conhecia as "dez" maneiras de cozinhar truta e fazia questão de explicar como tudo se arranjava. Por isso se fala de uma gastronomia aquiliniana. E é em Coura que ela está.

No entanto, a cozinha tradicional de Paredes de Coura, a gastronomia aquiliniana de carne e osso, foi inventada por outro, muitos anos depois da morte de Aquilino. E o outro é Manuel Vilaça Pinto (foto), o homem extraordinário que leva tanto povo a Coura como o festival do Taboão - e a terra não o reconhece.
Vilaça Pinto tem um restaurante, mesmo em frente à Câmara. O restaurante chama-se Conselheiro devido a outro figuraço local (Conselheiro Miguel Dantas), com nome de rua e tudo, mas toda a gente pensa que é por causa do Sr. Vilaça propriamente dito. O Sr. Vilaça é, com efeito, Conselheiro para todo o serviço. Peçam a panela de cozido e ele explicará porquê...
No Conselheiro restaurante, inimitável santuário gastronómico do Alto Minho interior, guardam-se e servem-se a cozinha e as palavras de Aquilino. O Conselheiro é único até nisto: promove Aquilino Ribeiro todos os dias, sem subvenções e sem esperar por cinquentenários ou outros aniversários. Estão lá o caldo-verde, os bolinhos, o porco avinhado em tinto, as trutas assim e assado. "Trutas que pediam boca que as soubesse apreciar", no dizer do mestre. E o Sr. Vilaça encarrega-se de ensinar Aquilino em cada um dos seus pratos. E oferece aos seus clientes um livrinho cheio de citações, a propósito, do autor de "A Casa Grande de Romarigães". E é tudo tão bom - a comida e as palavras.

Sobre o Fim-de-Semana Gastronómico, mais informação e programa aqui. Eu não posso ir, derivado a um problema nos bolsos. Digam que vão da minha parte e que mando cumprimentos.

A tal saída limpa

Foto Hernâni Von Doellinger

São cada vez mais os portugueses que procuram a sobrevivência no fundo de um contentor do lixo. Sei, porque ando na rua. Ainda há bocado, de Matosinhos até à Foz, no Porto, passei por nove pontos de contentores de lixo: em seis deles estavam pessoas à cata dos nossos melhores restos. Não eram "drogados", nem "alcoólicos", nem "arrumadores" fora das horas de expediente - se querem saber. Eram pessoas como nós, certamente com mais azar na vida do que nós. Vi, por exemplo: uma família inteira, que podia ser a minha família; uma senhora arranjada e digna, puxando um carrinho de compras que ia compondo com critério, e podia ser a minha mãe; um cavalheiro com o velho orgulho alquebrado, que me olhou com olhos de pedir desculpa por necessitar, e quase posso jurar que ele era eu.
É. Portugal está pronto para a saída limpa. Os portugueses que afocinhem.

(O texto é do passado dia 26 de Abril - chamava-se Portugueses low-cost. A fotografia fi-la há um minuto, em honra de Passos Coelho na televisão.)

E por falar em rubrica,

cá vai mais uma borla, à atenção de telejornais e noticiários radiofónicos: a palavra rubrica nunca se escreve com acento, mas lê-se sempre como palavra grave. A sílaba tónica é a penúltima, "bri". Isto é, e passo a fazer o desenho, diz-se sempre "rubríca", como se tivesse acento no i, e nunca "rúbrica", como se tivesse acento no u. Quer signifique assunto específico ou título de captítulo determinado, quer se refira a assinatura abreviada. É sempre rubrica, rubrica, rubrica. Dizendo-se sempre "rubríca", "rubríca", "rubríca".
E, já agora, é período que se diz e não "periúdo". Período, sempre, em todos os múltiplos significados da palavra. Que diabo, custa assim tanto ler os acentos onde eles estão?
Recapitulando: é rubrica e não "rúbrica", é período e não "periúdo". Estamos entendidos?

(Texto escrito e publicado no dia 30 de Junho de 2011. Sempre actual.)

Aqui há... gaivota

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A minha avó era uma santa

A minha bó de Basto tinha uma sociedade infalível com São Bento da Porta Aberta. Em questões de pele e outras coisas ruins, os dois juntos eram uma limpeza.
1 - Aí pelos meus vintes, eu tinha uma plantação de cravos no braço direito, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro. Os cravos desapareceram.
2 - Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro. O cravo desapareceu.
3 - Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembrava de um terceiro e definitivo milagre da minha avó, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.

O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da minha bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e pequerricha, ia a pé entender-se com São Bentinho sempre que era preciso. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar: por exemplo, convencer-nos de que João Paulo II é santo. Vai levar anos, e eu não acredito.

Lugares-comuns 141

Foto Hernâni Von Doellinger

Frei Agostinho da Cruz

Às chagas

Divinas mãos, e pés, peito rasgado,
Chagas em brancas carnes imprimidas,
Meu Deus, que por salvar almas perdidas,
Por elas quereis ser crucificado.

Outra fé, outro amor, outro cuidado,
Outras dores às vossas são devidas;
Outros corações limpos, outras vidas,
Outro querer no vosso transformado.

Em vós se encerrou toda a piedade,
Ficou no mundo só toda a crueza;
Por isso, cada um deu do que tinha:

Claros sinais de amor, ah saudade!
Minha consolação, minha firmeza,
Chagas do meu Senhor, redenção minha.

Frei Agostinho da Cruz

(Agostinho Pimenta, mais conhecido como Frei Agostinho da Cruz, nasceu no dia 3 de Maio de 1540. Morreu em 1619.)

quinta-feira, 1 de maio de 2014