sábado, 31 de agosto de 2024

Pode alguém ser quem não é?


Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
Parecia penitência, castigo. As nossas mães, dobradas horas a fio com os desgraçados joelhos enfiados naquele caixote de madeira a que uns chamam tacoila e outros chamam cunco ou outro nome qualquer, conforme a região, em todo o caso instrumento de suplício, ou então com um simples farrapo servindo de rodilha ou joelheira, as nossas mães, dizia, lavando, lavando, esfregando, esfregando, água, sabão amarelo e palha de aço, e depois chupar e secar, e depois, e só depois, talvez no dia seguinte, outra vez o castigo, outra vez a penitência, a cera regrada, o lustro puxada e repuxada, até que o soalho brilhasse como um espelho, como o sol. E ficava o cheiro. Aleluia!
E pelos 16 de Maio também. E igualmente pela Senhora de Antime, pelo Corpo de Deus. De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, a tílias, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas perla Maria Barraca à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Blog, que eu aqui celebro com Fafe. Para além do Tarrenego!, tenho outro blogue, especialmente dedicado a Fafe. Chama-se Fafismos mas mantém o endereço original - De Fafe, com muito gosto. Um blogue bem jeitoso. Fafe não gosta, e está no seu direito.

A-a-e-i-o

A-a-e-i-o
Vai para a neta o que foi da avó
A-a-e-i-o
Vai para a neta o que foi da avó

A vida de quem anda
às ordens de quem manda
já cheira que tresanda
não anda nem desanda

A vida de quem cresce
a pensar que a merece
não esquenta nem aquece
nem sequer arrefece

A vida de quem chora
à espera de uma aurora
que leve a noite embora
bem perde pela demora

A vida de quem cata
pulgas numa barata
é tão longa e tão chata
não ata nem desata

A-a-e-i-o
Vai para a neta o que foi da avó
A-a-e-i-o
Vai para a neta o que foi da avó

A, a, e, i, o
Bate na neta quem bateu na avó
A, a, e, i, o
Bate na neta quem bateu na avó

A, a, e, e, i
Bate na neta quem bateu em ti
A, e, i, o, u
Se a canção não te agrada mete-a no...


Sérgio Godinho

P.S. - Sérgio de Barros Godinho nasceu no dia 31 de Agosto de 1945, no Porto.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Abaixo de Braga e um pouco mais acima

Foto Hernâni Von Doellinger
                                         
                      Mandaram-no abaixo de Braga e ele foi.
                      Quando chegou a Celeirós,
                      telefonou a perguntar se estava bem.
 
A primeira pedra do actual Santuário do Sameiro, em Braga, isto é, por acaso bem acima de Braga, foi lançada e benzida, não sei se por esta ordem, no dia 31 de Agosto de 1890, faz hoje anos. Deus me perdoe, mas o Santuário do Sameiro agora faz-me rir, porque me lembra a cantiga "Óculos de sol" da Natércia Barreto, que eu durante muito tempo julgava que era a Madalena Iglésias. Esta, cá está, é uma private joke, que só eu, o presidente da Confraria do Sameiro, o reitor do santuário e talvez mais meia dúzia de pessoas, se tanto, catrapiscamos, desculpem lá a capelinha...
Como se sabe, o Sameiro é um extraordinário local de peregrinação, muito procurado sobretudo derivado ao bacalhau com natas, pelo menos pela parte que me tocava. Mas já não toca. Infelizmente, o velho Restaurante Maia é agora outra coisa e, quer-se dizer, acabou-se o que era bom...

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Para a Lagoa, rapidamente e em força

Foto Município de Fafe

Fanico. Isto é, migalha, pedaço muito pequeno, lucros insignificantes, ganhos mínimos e obtidos a custo. Ou por outra, chilique, desmaio, perda momentânea dos sentidos, ataque nervoso. E ainda, prostituição.
Fanicar: andar ao fanico, andar em busca de pequenos lucros, andar na má vida, fazer da prostituição modo de vida, biscatar, perder os sentidos, desmaiar, entrar em crise, por assim dizer, histérica.
Fanicar ou fazer em fanicos era também lascar, esbotenar, partir em bocados, pôr em fanicos, cá está. No jogo do pião, havia o pião das nicas, sem real utilidade desportiva, diga-se, porque já velho e eventualmente mutilado, mas era o que servia para apanhar as penalizações da ordem, dadas geralmente com uns piões gigantes, gorilas, com bico grosso ou bico de lança. Eram fanicos aquelas pancadas, porque o pião sofredor ficava nicado, ferido, picado, quer dizer, fanicado. Era o desgraçado de serviço. Em sentido figurado, humanizado, o pião das nicas é o indivíduo em quem todos mandam e a quem todos responsabilizam, o chamado bode expiatório - e assim explicado é fácil perceber porquê.

Ora bem. Por alturas da Lagoa, quero dizer, da romaria da Senhora das Neves, na última sexta-feira antes do último sábado de Agosto, o povo de Fafe subia à serra para pôr a santa na cabeça e tirar o diabo, está lá um funcionário com essa incumbência. Do centro de Fafe ao santuário da Lagoa são pouco mais de 12 quilómetros, pelo Passadouro. O povo é tolo, mas não ia a pé. Os automóveis ainda eram um luxo em Fafe e portanto ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento, do outro lado do então posto da GNR e de umas bombas de gasolina, que também lhe pertenciam, à garagem. Nessa enorme garagem, lá para os seus fundos e talvez anexos, construíram-se gloriosos carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira, camionetas velhas e malcheirosas que, no dia da festa, faziam fanico para a Lagoa e vice-versa.
Isso, andavam ao fanico, faziam fanico, era assim que se dizia, e estamos de volta ao nosso assunto. Fazer fanico, para os autocarros, significava trabalhar sem horário avisado ou pré-estabelecido. As camionetas arrancavam, numa ou na outra direcção, quando estivessem cheias, a esbordar sempre que possível. Saíam da "Empresa" carregadas de gente mais ou menos sóbria, largavam a carga na Lagoa, esperavam pelo enchimento seguinte num terreiro aparelhado à pressão no meio do monte, à torreira impiedosa do sol, e regressavam a Fafe quando calhasse e a rebentar de gente regularmente bêbada da cabeça aos pés.
Era um ramerrame combinado. Iam e vinham, iam e vinham, os autocarros. Iam e vinho, iam e vinho, os passageiros.
Ao fim do dia, no desmanchar da feira, com o sol a pôr-se lá para os lados de Guimarães, o descampado enchia-se de pancadaria da grossa, famílias inteiras umas contra as outras, na batalha sanguinolenta pela entrada na camioneta prestes a sair para Fafe, às vezes a última, a derradeira sem apelo nem agravo, e depois era mesmo só a pé.
Atacava-se com tudo o que se tivesse à mão. Navalhas, pedras, chibatas, bengalas, muletas, colheres de pau, joelhos, tachos e panelas, socos e galochas, melões e melancias, garrafões vazios, açafates, quadros do anjo da guarda comprados apenas há minutos, concertinas, reco-recos, bombos e ferrinhos, num desconcerto sem dó nem piedade, e lá no meio, aproveitando a abençoada confusão, feliz da vida, o meu avô de Basto, que por acaso até ia a pé para Passos, via Várzea Cova, com a minha avó atrás, e não precisava da camioneta para nada, o meu querido avô de Basto, estava a dizer, varria o ambiente com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, tenteando o vinho para não cair de cangalhas e lançando aos céus o seu famoso grito de guerra - Olraitecamoniésse!

Ó meus amigos! Taylor Swift, que eu na verdade não sei muito bem em que é que consiste, há-de ser certamente uma coisa importante, mas a nossa Lagoa, juro-vos, também era uma festa muito bonita. E, ainda por cima, ia-se ao fanico...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Fafismos, quando Taylor Swift andava por aí a atolambar o povo. Hoje, última sexta-feira antes do último sábado de Agosto, é dia da grande peregrinação à Lagoa.

O melão do meu avô da Bomba

O melão era um acontecimento. Celebrava-se uma vez por ano, por alturas da Lagoa, se não estou em erro, e o mestre-de-cerimónias era o meu avô da Bomba, um adivinhador de melões como decerto não haveria outro de semelhante calibre nas redondezas, e quando por acaso não acertava, o que acontecia com lamentável frequência, a culpa era evidentemente do melão. Os melões, é que o têm, só se sabe se são bons depois de abertos: o meu avô nunca se enganava, os melões às vezes é que não correspondiam...
Ia-se à Lagoa por tudo e mais alguma coisa. Ia-se para pôr a santa na cabeça, para fazer a barba e cortar o cabelo nos barbeiros abancados debaixo das árvores do largo em frente ao santuário, ia-se para ver o ambiente, para apanhar icónicas borracheiras, para fazer compras escusadas, para ouvir as bandas de música, para ver a procissão, para dar um pezinho de dança, para cantar ao desafio, ia-se para empernar e apalpar rabos e mamas, ia-se por ir ou simplesmente para andar à pancada, ia-se apenas para apartar um melão, numa fugida, e era esse, enfim, o caso do meu avô da Bomba.
Em casa, nos Bombeiros, eram chamados os maiores especialistas em melão de Fafe, isto é, os três ou quatro melhores amigos do meu avô, os do costume, os mesmos que também eram os maiores especialistas em canários e pintassilgos de Fafe. A minha avó punha a mesa como um altar, só para homens. O melão ao meio, resplandecente e prometedor, qual sacrário por revelar.
Fazia-se silêncio. Sentia-se uma certa comoção na sala. Como seria este ano? O meu avô tomava a faca num gesto largo, teatral, levantava-se, suspirava e abria o melão. Oh!... Havia uma primeira reacção, à cor, ao sumo, ao cheiro, eram peritos realmente, abanavam a cabeça, reviravam os olhos, trocavam monossílabos lá de entendidos, e seguiam para a prova propriamente dita, da boca para dentro, e que sim senhor, e que nem mais cedo nem mais tarde, maduro no ponto, apimentado, uma especialidade, um assombre, uma primeirinha, abençoadas mãos que o souberam escolher.
O meu avô ficava num sino, agradecia os encómios, explicava a técnica, desvendava o segredo, exultava de falsa modéstia e, sem mais nem menos, aproveitava para contar as suas duas anedotas. Era sagradinho. Desde que não soubesse descaradamente a botefa, o melão do meu avô da Bomba era sempre um sucesso, os elogios dos velhos expertos estavam garantidos e todos os anos o melão deste ano era ainda melhor do que o melão do ano passado.
O único problema era a despesa. O meu avô passava a merenda inteira a chorar os quinze merréis que dera pelo estupor do melão, a ver se alguém se chegava à frente com qualquer coisinha para a ajuda ou então para ter pé para cobrar aos amigos pelo menos a pinga de vinho que acabara de lhes oferecer...

P.S. - Hoje, última sexta-feira antes do último sábado de Agosto, é dia da grande peregrinação à Lagoa.

Pela Europa, à americana

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

O que acontece em Fafe, fica em Fafe

As máquinas de flippers chegaram a Fafe creio que pelos finais da década de 70 do século passado e assentaram arraiais na exígua sala de bilhares do velho café Peludo, onde Serafim d'Eiteiro debitada pérolas filosóficas para jogadores momentaneamente ensandecidos. Fafe daquele tempo, sobretudo Fafe fora de horas, era uma terra de jogo, havia muito vício, muita batota. O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo exactamente. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao sapo, ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. Ateimava-se. A ateima também era um jogo. Jogava-se a tudo. E até se jogava ao pilas, como já por aí contei.
Queiramos ou não: Fafe era Fafe, um farol civilizacional, inapagável Las Vegas do vale do Ave hoje em dia com barragem e tudo, oásis de sorte e azar encravado entre a Póvoa de Lanhoso e Felgueiras, a zona de Basto, Vieira do Minho e Guimarães, consoante o lado por onde se lhe quiser entrar.
Os flippers chegaram a Fafe e foi uma febre medonha. Uma epidemia, descontrolada mas circunscrita. Eram sempre os mesmos, os do póquer, que eram os do bilhar, que eram os do dominó, que eram os das copas, agora apanhados pelo pinball, e apostava-se ali à rica e sempre com o dinheiro na mão. Os recordes, sucessivamente batidos, valiam belas maquias. Eram autênticos agarrados, constavam-se lares praticamente desfeitos. Era preciso marcar vez, havia quem pagasse por uma vaga, havia quem se esquecesse de ir trabalhar à tarde, só para não largar a máquina, deixando-a à mercê da concorrência. Não havia vida para além dos flippers, morava-se ali, ao som daquelas campainhas mágicas, sem mulheres, sem filhos, e ao fim da noite talvez também sem um tostão no bolso. Depois as máquinas foram embora, foi a sorte, ou então milagre, e os jogadores tornaram a casa, às mulheres e aos filhos, à vida real. Até que chegaram as consolas, os computadores e os telemóveis espertos...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Gamer.

Contra os testes nucleares

Era sempre o primeiro e o mais aguerrido na luta contra os testes nucleares. Não, não e não. Não, obrigado! Testes nucleares, não! Na escola, na rua, nas redes sociais, até em casa, contra os testes nucleares marchar, marchar! Activista, militante, farol a pilhas, peito para balas, costas largas, mas compreende-se. Ele queria ir para Medicina. E Biologia, Geologia, Física, Química e Matemática realmente não são brincadeira...

P.S. - Hoje é Dia Internacional Contra os Testes Nucleares.

Com tomates até às orelhas

Foto Tripadvisor

Corria mais ou menos o insuspeito ano de 2018 quando, de repente, o tomate pelado Guloso, como quem diz o tomate nudista, começou a aparecer-me cá em casa vestido, isto é, com pele. Seria pudor? Frio? Questão de moda? Censura? A merda do wokismo? Fiquei com a pulga atrás da orelha. Farto de ser levado na conversa, aproveitei a última década para passar de bovino come e cala a guerrilheiro da reclamação, e não me tenho dado mal. Dei-me até muito bem por exemplo num gramático protesto a propósito de uma alheira de caça à qual faltava a cedilha, como já aqui contei.
Portanto, o que é que eu fiz? Resolvi contactar o Sr. Guloso ele próprio, perguntando-lhe, preocupado e mais respeitosamente era impossível, se por acaso não estaria o Excelentíssimo passando por alguma crise de escrotal decoro (há que chamar as coisas, neste caso os coisos, pelo nome), e aproveitei para me queixar do cada vez maior verdor e da cada vez maior acidez do produto em questão. O tomate pelado, não esqueçamos.
O meu e-mail teve resposta em quinze dias. Uma resposta profissional, simpática e, pareceu-me descortiná-la, com uma pitada de ironia no estrugido, que foi o que melhor me soube. Fui informado de que os tomates de que eu reclamava tinham sido produzidos "na campanha de 2017, que, por condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio), se traduziu em tomate mais ácido, com menos cor e que se separa da pele com mais dificuldade."
Como forma de "atenuar a imagem menos positiva" que em mim lamentavelmente provocara, o Sr. Guloso revelou a intenção de enviar-me "um cabaz de produtos da marca, incluindo pelado da campanha de 2018, na expetativa de" me "fazer chegar um tomate pelado mais condizente com o nome". E cá está a piadinha...
Obviamente agradeci e recusei a generosa oferta, hábito antigo do velho ofício.
Agora. Estamos no ano de 2024. O tomate pelado Guloso continua a chegar-me a casa com pele, verde e ácido, rigorosamente como o da famigerada e defeituosa colheita de 2017. Conclusão, das duas uma: em Portugal os anos são todos de "condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio)", pelo menos para os tomates, ou então há meia dúzia de anos que todos os anos são 2017. O que seria extraordinário, embora eu já tenha visto algo do género num filme.
Por outro lado, fui ao calendário e descobri o uso que hei-de dar ao monte de embalagens de tomate pelado Guloso que realmente não o é e que acumulei na despensa por não me servirem para nada na cozinha. Hoje é Dia da Tomatina, ou Dia de La Tomatina, na cidade valenciana de Buñol. Estou a caminho, hermanos míos, com tomates até às orelhas. E olé!

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O araújo, agora no Sporting

Ter um araújo no olho é uma daquelas expressões pândegas que eu trouxe comigo de Fafe, e nem vou dizer que ela seja apenas nossa, exclusiva, mas que terá sido parida cá por estas bandas, isso já sou capaz de arriscar. Araújo é sobrenome galego e português de origem nobre medieval, também possível de encontrar escrito como Araujo ou Araúxo, mas serve igualmente de topónimo e nem é preciso ir mais longe, basta dar um salto aqui ao lado, ao antigo apeadeiro de Araújo, actual estação do Metro do Porto, em Leça do Balio.
Araújo, nome de pessoa e de sítio, está visto, mas também, há quem diga, denominação de uma variante da árvore araúja. Para nós, porém, os fafenses velhos e irredutíveis, araújo é partícula que entra no olho acidentalmente, grão de pó, minúscula maravalha, bíblico argueiro, cisco, arujo. Arujo, exactamente arujo, vocábulo fidedigno e certificado de onde facilmente derivou a nossa arisca porém bem desenrascada corruptela.
Ter um araújo no olho. Outro dia, sem mais nem menos, lembrei-me da expressão antiga, e nem faço ideia de há quantos anos não lhe punha a vista em cima nem lhe dava uso. Perguntei à minha mulher se a conhecia de algum lado, à expressão, se já a teria dito ou pelo menos ouvido. E ela disse-me que não. Fiquei varado! Quer-se dizer: a minha mulher, rapariga da nossa idade, nasceu no Porto, na Foz, mas é filha de pais rústicos, o meu sogro de Baião e a minha sogra de Canelas, Gaia. Isto é, a minha mulher tinha obrigação, e, vai-se a ver, nada...
Nada, também não é bem assim. Sobre araújos, a minha mulher fez questão de explicar-me que sabia era a famosa anedota que mete marinheiros e aviadores. Aquela que pergunta: se quem trabalha no mar é marujo, porque é que quem trabalha no ar não é araújo? Isso.
Ter um araújo no olho. A expressão. Não é anedota, definitivamente não é uma anedota, mas que se põe a jeito, lá isso...

P.S. - No olho do furacão, o Araújo chegou hoje ao Sporting, de acordo com os jornais. Estimo-lhes as melhoras, ao Araújo e aos jornais. E ao olho. O Sporting, se lhe der uma coisinha má digamos que no próximo sábado a partir das 20h30, para mim também está bem.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O princípio das coisas

Foto Tarrenego!

No dia 27 de Agosto de 1989, na Bulgária, José Garcia conquistou o bronze em K1 10.000, primeira medalha da canoagem portuguesa em campeonatos do mundo.

De Pandora a Paulo Macedo

Pandora era a primeira mulher, a Eva lá deles, a mulher perfeita, criada por Hefesto e Atena, com a mãozinha de todos os outros deuses, cada qual conferindo-lhe um dom, sob régua e esquadro de Zeus. Pandora era "a que tudo dá", "a que possui tudo", "a que tudo tira". Pandora foi feita de encomenda para agradar aos homens. Depois tomou conta da Caixa, ou da Boceta, como dizem os cultos e alguns depravados, e hoje em dia é Paulo Macedo.

A caixa do Evaristo

Quando abriram a caixa de Pandora, estava lá dentro o Evaristo. Foi um escândalo!

P.S. - O cineasta alemão Georg Willhelm Pabst, realizador de "Lulu" e de "A Boceta de Pandora", nasceu no dia 27 de Agosto de 1885. Há quem diga 25 de Agosto.

O Mágico

É o número 10
finta com os dois pés
é melhor que o Pelé
é o Deco, allez, allez.

P.S. - Anderson Luís de Souza, aliás Deco, nasceu no dia 27 de Agosto de 1977.

Do relvado para as obras

Foto Hernâni Von Doellinger

O terramoto

O Governo diz que reagiu muito bem ao terramoto. E o Presidente da República também está bastante satisfeito. Não se passou nada, mas podia ter sido uma tragédia. Quer-se dizer: foi realmente um êxito.

Ronaldo como D. Sebastião

Numa entrevista que só vai dar logo à noite, Cristiano Ronaldo esclarece: "Quando deixar a Selecção, não vou avisar ninguém". Isto é: quando lhe der na cabeça, deixa apenas de aparecer, como o outro, o de Alcácer-Quibir.

domingo, 25 de agosto de 2024

Quem me dera ser cão

Três mulheres à mesa na pequena esplanada da confeitaria famosa, gozando uma falsa fresca de fim de tarde neste Verão um bocado tolo. São jovens, alegres, morenas, as mulheres, e têm um cão. Um cão pequeno, rechonchudo, de focinho amarrotado, caricatura de um velho boxista na reforma. Será talvez um pug. Leio na Wikipédia que o pug tem "personalidade", que é "encantador, brincalhão, astuto, sociável, arteiro, dócil, afectuoso, teimoso, amoroso, atento, tranquilo, calmo". Pois. Será. O estupor do cão, o sortudo do cão, passeia-se irrequieto de colo em colo, de mama em mama, esfregando-se ao comprido na brancura sedosa de seis seios quase ao léu, lambendo, lambendo e mais não sei quê, e as mordomas ali na rua sem pudores, crescentemente excitadas, vermelhas, aos gritinhos, aos saltinhos, num fuzuê que só visto.
Ora bem. Foi na parte do mais não sei quê - e digo mais não sei quê porque realmente não faço ideia, o assunto interessou-me sobremaneira, eu estava ali concentradíssimo como o Futre, invejoso, confesso, mas não consegui perceber o que se passava até às últimas consequências -, portanto, foi na parte do mais não sei quê que a mulher menos jovem, com evidente cara de dona, largou os suspiros, ganhou fôlego, esganiçou ainda mais a voz e disse ao cão, imperativa: - Frederico! Não! Não! Não! Mamãe já falou! Isso não, Frederico!
Fiquei fodido! Não tanto por causa da indivídua chamar Frederico ao cão. Também chamo Frederico ao meu filho Kiko e isso nunca me incomodou, antes pelo contrário, até porque é o nome dele. O que me confundiu foi aquilo de ela ser mãe do cão. Estou velho para estas merdas. Fico baralhado com estas modernices sorrateiramente edipianas mas ao contrário. Não consigo acompanhar estes tempos malucos em que a nova ordem parece ser tratar os animais como pessoas, como filhos, e tratar as pessoas como animais. Como animais que não são tratados como pessoas. Como pessoas que não são de estimação. Não percebo. Estou definitivamente fora de prazo. E fiquei fodido!

Quer-se dizer. Hoje é Dia do Cão e, assinalando a efeméride, o Kiko e a Sara vão de férias e deixaram-nos o Amendoim. O Amendoim é o cão deles, porque eles gostam muito de animais. Já eu e os cães é uma desgraça, estou farto de dizer, e é preciso ser-se um bocado maricas para chamar Amendoim a um cão. Aliás, eu sempre defendi que lhe chamassem Evaristo, mas o Kiko e a Sara ninguém me liga, e ainda por cima o caralho do cão, guicho como tudo, gosta de mim e eu também me perco por ele, não desfazendo, acho-lhe um piadão, por isso chamo-lhe Toni ou Carlitos, consoante. Ficámos igualmente com o Lambiscas e com o Bully, os gatos deles, como de costume. Portanto estou como quero. E, sinceramente, espero que o Kiko e a Sara também.

Você tem-me cavalgado

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 24 de agosto de 2024

Armado em Bond

Ele tinha realmente a mania. Fosse aonde fosse, entrasse aonde entrasse, chegava ao balcão e pedia um "martini seco, agitado, não mexido". Nem que estivesse na repartição de Finanças. E acrescentava, cheio de classe e charme: - O meu nome é Quim, Joa Quim.

P.S. - Sean Connery, o meu 007 preferido, nasceu no dia 25 de Agosto de 1930.

O tolo (no meio da ponte)

Foto Manuel Almeida/Lusa

Hugo Soares, secretário-geral do PSD, líder parlamentar do partido e braço direito do primeiro-ministro Luís Montenegro, não sabe para que lado se há-de virar no que diz respeito às eleições presidenciais americanas. Entre Donald Trump e Kamala Harris, diz ele que "teria muita dificuldade" em escolher. Pois, é realmente muito difícil...

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Campos de férias

Todos os meses de Agosto de todos os anos, o aviso lá estava bem visível à porta de entrada, para orientação de pessoal, clientes e público em geral: "Campos de férias!", dizia o letreiro. E fazia todo o sentido, porque a verdade é só uma - o Campos era a alma daquela empresa, passava-lhe tudo pelas mãos. Na ausência do Campos, o serviço ressentia-se, era como se estivessem fechados, o próprio Campos não se cansava de o repetir.
Lembram-se daquele ilustre industrial fafense que veio de férias do Ultramar e a guerra teve de parar até que ele regressasse à mata? O Campos também era assim, essencial e insubstituível. E um bocado mentiroso.

Quem quer ver a barca à vela

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Na marmita

Depois de ter inventado uma marmita, Papin marcou 30 golos em 54 jogos realizados pela selecção francesa.

Por outro lado. Denis Papin, o tal da panela de pressão, era uma homem muito à frente, avançado como o outro: ele premuniu que um dia no futuro, talvez apenas três ou quatro séculos adiante, quer-se dizer agora, todos nós em todo o mundo levaríamos na marmita. E realmente.

P.S. - O físico e inventor francês Denis Papin nasceu no dia 22 de Agosto de 1647.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

O segredo da Albertininha da Lameira

Foto Hernâni Von Doellinger

Os melhores bolinhos de bacalhau do mundo eram os da Albertininha da Lameira, em Fafe. Contava a lenda que estes maravilhosos bolinhos eram moldados no sovaco da prendada cozinheira, o que lhes emprestaria aquele gosto tão peculiar. A vila antiga dava-se muito a estas lendas: dizia-se também, por exemplo, que os tremoços da Marrequinha da Recta eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava na demolha.
A verdade é esta: ainda cheguei a ver a Albertininha, numa tarde de sábado, a fazer a massa dos famosos bolinhos, de alguidar entre as pernas, junto ao fogo da lareira, na cozinha asseada e sombria, mas a história do sovaco enformador afinal era uma treta - isso posso jurar, e tive pena.
Os bolinhos do Manel do Campo também eram de se lhes tirar o chapéu. E, de um modo geral, as pensões e os tascos de Fafe faziam gala de confeccionar e servir um produto, como agora se diz, fiel às origens e de altíssima qualidade. Esta tradição local creio que se mantém, em sítios como, veio-me agora a ideia à boca, o Fernando da Sede (Adega Popular). Os bolinhos de bacalhau com salada de feijão-fradinho e arroz do Fernando surpreendiam e encantavam os visitantes, e, para os da terra, eram uma esplêndida entrada para a vitelinha que haveria de vir. Mas isso, nos dias que correm, seria já refeição a pedir uma segunda hipoteca da casa.
É. Os bolinhos "de morrer por mais" são no Minho - bem o sabia mestre Aquilino. Em Fafe, é claro, mas também no Manuel Padeiro e no Gaio, em Ponte de Lima e em dias sim, ou no desaparecido Conselheiro, em Paredes de Coura, no tempo do saudoso amigo Vilaça Pinto, sempre. Em sítios assim, que os havia bons e tantos, e cá em casa também nos ajeitamos, mas não servimos para fora...

Os piores bolinhos de bacalhau do mundo eram em Penafiel, num pequeno café cujo nome não interessa. Três mesas, dois jornais, um balcão sumário e a simpatia imensa do dono. Os bolinhos eram tão maus, tão esplendidamente maus, que eu nunca falhava quando por lá passava a horas de aperitivar. Metia o pé no degrau da entrada, ao baixo, e saía logo meia dúzia de pedras de gelo directamente da arca frigorífica para a fritadeira de óleo cansado, que é "Para o senhor, para serem fresquinhos". Eu agradecia a deferência e reservava-me. Cinco minutos, não mais. As pedras de gelo vinham para a mesa a ferver e a pingar, agora em forma aparentada com a dos verdadeiros bolinhos de bacalhau, queimavam-me a boca e antes assim, que enganavam o paladar. Não sabiam ao bacalhau que não tinham, mas também não sabiam à batata que eram só. Escangalhavam-se ao toque. Eram extraordinariamente intragáveis e eu comia-os. Já disse: o patrão era gente boa e tinha três mesas e dois jornais diários no estabelecimento. Sei dar valor às coisas verdadeiramente importantes. Para apagar o incêndio, bebia uma taça de um obscuro vinho branco de cápsula que sabia a remédio mas não me fazia bem.
A minha mulher e eu descobrimos o cafezinho por acaso e levei lá três ou quatro amigos. Para provarem "os piores bolinhos de bacalhau do mundo", era o que lhes prometia, e os amigos depois concordavam comigo. Aqueles bolinhos nunca me deixaram ficar mal. Mereciam um prémio.
Até porque nos abriam horizontes. A seguir, íamos à Pita Arisca, em Lousada, comer talvez o melhor cabrito assado do mundo...

Os de Lisboa, lisboetas de gema ou simpatizantes, têm a mania de chamar "pastéis de bacalhau" aos bolinhos de bacalhau. Néscios! É como os pândegos dos franceses chamarem "fromage" a uma coisa que toda a gente sabe que é queijo e foi inventada em Ponte do Lima. Aqui atrasado, o Miguel Esteves Cardoso escreveu sobre bolinhos de bacalhau no jornal Público. O bom do Miguel nasceu na capital, estudou em Inglaterra e confessa que só muito recentemente é que descobriu a sério o Minho. Também ele chama "pastéis de bacalhau" aos bolinhos do mesmo, mas é o Miguel, está desculpado.
O jornal é que não. Lembro-me de uma vez em que o periódico da Sonae reuniu "dois painéis de jornalistas" da casa e "especialistas em gastronomia", um painel em Lisboa e outro painel no Porto, para provarem bolinhos de bacalhau comprados fresquinhos "em diferentes pastelarias nas duas cidades". A notícia dizia que o resultado foi uma desilusão completa: as amostras recolhidas revelaram-se todas incompetentes.
Mas de que é que estariam à espera os ilustres paineleiros? Bolinhos de bacalhau em Lisboa e no Porto? E em pastelarias e cafés, percebi bem? Panikes e croissants com chocolate, isso é que os dois comités de sábios deviam ter provado. Pedissem eles arroz de grelos, pastelões de petinga, pataniscas ou caldo de nabos, e seria o mesmo desastre. Os cafés e as pastelarias do Porto e de Lisboa não são para esses preparos. Vá lá, o caldo de nabos... talvez.

Agora. Hoje são "os 21", em pleno Agosto, dia maior das Festas em Honra de Nossa Senhora da Saúde, ou Festa da Lameira, "Lameira de Agosto" ou simplesmente Lameira, que pertence à freguesia do Rego, ou São Bartolomeu do Rego, Celorico de Basto, mas para os velhos fafenses era e é como se fosse Fafe. Antigamente, neste dia, havia por lá uma valente feira de gado, e uma vez uma vaca espantou-se não sei com quê, soltou-se do sítio onde estava a guardar e correu o arraial inteiro de uma ponta a outra a espalhar o pânico e o caos em direcção à Pica, escornando e escoiceando a torto e a direito, desfazendo tendas, barracas e ornamentações, invadindo tascos e casas sérias, saltando para cima de carros e outros veículos mais ou menos motorizados e levando à frente aquele povo todo, aflito e tolo que não sabia aonde se havia de meter, anjinhos e mordomos incluídos. Eu, muito bem entrincheirado, ri-me como um perdido. Quer-se dizer: a coisa não constava do programa, mas foi uma bonita tourada...

Camping

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Quanto mais alto, melhor

Ligo a aparelhagem, e desde logo gosto da palavra. Aparelhagem! Palavra antiga e pós-moderna. Ligo a aparelhagem, repito por puro gozo, e ouço a poderosa Abertura 1812, de Tchaikovsky, e é como se fosse o Minho, o meu Minho. Isto é: quanto mais alto, melhor.

P.S. - A estreia da Abertura 1812, de  Piotr Ilitch Tchaikovsky, um dos meus universais favoritos, ocorreu no dia 20 de Agosto de 1882, em Moscovo, Rússia.

De volta ao planeta dos macacos

Uma equipa de cientistas britânicos descobriu aqui há anos que os ninhos dos orangotangos são autênticas obras de engenharia. E de "engenharia complexa", é preciso que se note. Em retaliação, uma equipa de engenheiros argentinos descobriu que um casal de chimpanzés do Uganda estava a trabalhar numa nova vacina contra a covid.
Entretanto, na pacata vila de Borneo Apes, na Indonésia, chorava-se baba e ranho pela partida de Pony, a prostituta preferida que durante anos a fio satisfez os, por assim dizer, homens da população. Pony era uma orangotanga, se me permitem a expressão, estrela da casa de putas da terreola e finalmente resgatada pela Associação Protectora dos Orangotangos, após um ano intenso de tentativas frustradas de salvamento.
Darwin tinha razão. O que ele certamente não sabia é que era tanta e tão retorcida.

P.S. - Charles Darwin publicou pela primeira vez a sua teoria da evolução pela selecção natural no dia 20 de Agosto de 1858.

Primeiros socorros

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 18 de agosto de 2024

Bruxedos à moda do Porto

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao portão de um dos cemitérios da cidade do Porto. O bruxedo apareceu ali da noite para o dia, toda a gente se queixou, toda a gente se desviou e ninguém teve coragem de mexer na coisa, de a mandar para o lixo. Nem o padre da igreja ao lado nem os coveiros propriamente ditos. Trabalhar com almas e mortos está bem, desafiar maus-olhados é que não, faxavor de desculpar.
Passou-se um, passaram-se dois, três, quatro, cinco dias, e o galo ali, possivelmente já com o serviço feito e portanto com os poderes esgotados, mas nem assim alguém ousou sequer tocar-lhe. O pessoal da Junta de Freguesia, executivo e funcionários, reuniu e foi unânime, cada um passava a encomenda para o que vinha atrás, "Eu não, bruxedos comigo não", até que a vizinhança viva reclamou que já não aguentava com semelhante fedor, ciciando padres-nossos e ave-marias, de terço na mão e muitos sinais da cruz mas feitos ao contrário, não fosse o diabo tecê-las...
Ora, o fedor, como toda a gente sabe, é problemática que sobe a instância superior, à alçada camarária. Em conformidade, foram requisitados os serviços de limpeza da cidade, que chegaram ao local do sinistro tarde e a más horas e resolveram o assunto em três penadas. Isto é: não fizeram nada. "Eu também não, bruxedos comigo não"...
Perante o impasse, alguém tirou a mola de roupa do nariz e alvitrou que se chamassem os Comandos da Amadora ou o Grupo de Intervenção de Operações Especiais da GNR, um pediu a presença da Brigada de Minas e Armadilhas da PSP, o espertalhão do costume recomendou o Putin, se era para rebentar com aquilo tudo, o russo servia, ou o Trump, e outra ainda sugeriu que se mandasse vir o Bruxo de Fafe para fazer a competente marcha-atrás à coisa, tornando seguro o seu manuseamento. Mas a Junta não dispunha de verba orçamentada para pagar a especialistas.
Foi quando um dos da Câmara se lembrou que o Canil Municipal tem um camião com um gancho hidráulico muito jeitoso, uma espécie de braço mandado que podia solucionar mecanicamente aquele problema bicudo, com os homens ao largo e portanto sem risco de agoiros, porque os agoiros, como é do conhecimento geral, têm um certo e determinado raio de acção, potente mas limitado. E assim foi. Ao sexto dia, o todo-poderoso veículo veio e levou a coisa, para sossego enfim de todos os moradores da zona, vivos e mortos, amém.

P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Novembro de 2011. No âmbito dos julgamentos das bruxas de Salém, cinco pessoas - uma mulher e quatro homens, incluindo um clérigo - foram executadas no dia 19 de Agosto de 1692, em Salém, Massachusetts, EUA, após terem sido condenadas por bruxaria.

Coração de ouro

Tinha um coração de ouro. Pô-lo no prego e comprou um carro em segunda mão.

P.S. - A notícia da corrida ao ouro na Califórnia foi dada para a Costa Leste dos Estados Unidos no dia 19 de Agosto de 1848. Saiu no jornal New York Herald. Na verdade, a corrida tinha começado em Janeiro.

Ao sabor do vento

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 17 de agosto de 2024

Ela gostava de se apernaltar

Ela, vaidosa, gostava de se apernaltar. Não é que ela fosse irremediavelmente baixa no seu magnífico metro e cinquenta e sete, na verdade os seus pés chegavam quase sempre ao chão, pelo menos quando andava, mas ela gostava de sentir-se nas nuvens. Só calçava carrinhos de choque e recorria a todos os expedientes para crescer a olhos vistos. E metia tudo o que podia: cunhas, calços, avançados, médios defensivos, rampas, plataformas, saltos, tacões e até palmilhas em camadas, como bolo recheado. Era de rir vê-la caminhar naqueles preparos altaneiros e amiúde circenses, e ao riso dos outros ela chamava inveja, sentimento rasteiro, coisa de gente pequena. Portanto era isso, não é erro, não há engano - ela gostava mesmo de se apernaltar.

Idiota estagiário

Viu um anúncio a pedir idiotas e lá foi ele. Tinha acabado a universidade e respondia a todos os anúncios. Correu bem: entrou como estagiário.

P.S. - Hoje é Dia do Estagiário. Calha bem, por ser domingo.

O meu menino é d'oiro

Foto Hernâni Von Doellinger

Vá ver a neve, hoje!

A melhor altura para ir ver a neve à serra da Estrela, acho eu, é agora, no Verão, em pleno Agosto, hoje por exemplo. Não há neve, mas pode-se passar.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Os filósofos fafenses

Eu ouvia-os. Ouvia-os atentamente. E aprendia. O Sr. Ferreira do Hospital, o Sr. José do Santo, o Lininho Leite, o David Alves, o Zé Manel Carriço, o Mola, o Sr. Lem, o Landinho Bacalhau, o Sr. Aristeu da Loja Nova, o Aristides Carteiro, o Tónio da Legião, o Sr. Saldanha, o Cunha da Fazenda, o Zé de Castro, o Manel da Pinta, Nélson Fafe, o Guia, o Júlio Barbeiro, o Zé do Registo, o Quinzinho da Farmácia, Nelinho Barros, o professor Alberto Alves, o Carlos Alberto, o Pimenta, o Toninho da Luísa, o Varinho Dantas, Serafim d'Eiteiro. Era. Eu ouvia-os. Atenta e reverentemente. E aprendia. Mas ainda não sabia que eles eram filósofos.

P.S. - Publicado ontem no meu blogue Fafismos, a propósito do Dia do Filósofo.

Apontar é... lindo!

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Lourenço da Arrábida

O problema do Lourenço da Arrábida era o equívoco. Ou o gozo. O inocente equívoco ou o gozo premeditado, ele ainda não chegara à conclusão. O Lourenço tinha um tasco na Cantareira, paredes-meias com a ponte, e vai daí ficou-lhe o nome, que se propagou compreensivelmente ao estabelecimento - "Lourenço da Arrábida vinhos & petiscos", lá estava na tabuleta, como manda a sapatilha. Servia às quintas-feiras uma dobrada de razoável gabarito e preço em conta, segundo se constava. O certo é que as pessoas estavam sempre a perguntar-lhe pelo Omar Sharif, pelo Anthony Quinn, pelo Alec Guinness, ou se realmente ele viu Judas a cagar no deserto, como se dizia em Fafe no tempo do Cinema. Chamavam-no à televisão para comentar a situação no Médio Oriente, a mortandade em Gaza, as ameaças do Irão, o à-rasquismo mundial, mas admiravam-se por ele aparecer em pessoa e consequentemente ainda estar vivo, uma vez que para os devidos efeitos morrera num acidente de mota. Perguntavam-lhe também, se, por falar nisso, a Guinness deve ser bebida fresca ou à temperatura ambiente como alguns e determinados têm a mania. Enfim, já se sabe como são as pessoas.
O bom do Lourenço primeiro ia aos arames, afinava, escamava-se. Cego pelos nervos, num repente rapava da adaga e desatava a gritar "mouros!" e a matar a torto e a direito felizmente só da boca para fora. Quantas tragédias foram assim prometidas e adiadas, para enorme desconsolo da CMTV e assinalável prejuízo da indústria funerária da região. Mas com o tempo o nosso herói assentou, ganhou calo no cu, como se diz psicologicamente falando. Agora se o azucrinam com as tretas do costume, ele encolhe os ombros largos de desdém, pigarreia uma e outra vez, sacode duas valentes chibatadas no camelo de estimação e desaparece dali a galope, ondulando o manto branco por entre hordas descontroladas de turistas japoneses e outros infiéis que descem e sobem aos encontrões as ruas completamente escangalhadas da Baixa portuense.

P.S. - Thomas Edward Lawrence, aliás, T. E. Lawrence, também conhecido como Lawrence da Arábia e, aparentemente entre os seus aliados árabes, Aurens ou El Aurens, foi um arqueólogo, militar, agente secreto, diplomata e escritor britânico. Nasceu no dia 16 de Agosto de 1888.

Sócrates até começou bem

Sócrates começou como filósofo em Atenas e jogou na selecção brasileira de futebol. Anos mais tarde foi primeiro-ministro de Portugal. Estragou tudo.

P.S. - Hoje é Dia do Filósofo. No Brasil.

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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Uma questão de tamanho

Chegava ao intervalo e mudava sempre de equipamento, de L para XXL. Era um jogador que, como diziam os comentadores, costumava crescer muito na segunda parte...

Tocata e fuga

Foto Hernâni Von Doellinger

Padres pedófilos, cá e lá

Em Espanha, a Polícia procura os padres pedófilos. Em Portugal, a Igreja esconde-os.

A história de João Feliz

Foto Wikipédia

Era um vez e depois foi várias. O jovem jogador de futebol João Félix era do FC Porto e deixou o FC Porto porque no FC Porto perdera "a alegria de jogar". João era infélix. Por isso foi para o Benfica, onde voltou a ganhar a alegria de jogar. E então, sim, João era félix. Por isso deixou o Benfica. Foi para o Atlético de Madrid, que lhe acenou com seis milhões de euros por ano. Mas passaram sete anos e quarenta e dois milhões, empréstimos macambúzios ao Chelsea e ao Barcelona, e João está outra vez e como sempre infélix e, quando for grande, quer deixar definitivamente os colchoeiros, como muito bem lhes chamam os nossos compatriotas galegos. Quer-se dizer: João quer ser outra vez félix, se possível ainda mais félix, tão félix como certamente nunca foi. E o comissionista Jorge Mendes também.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Oh, my dicky ticker!

Eu tinha um cardiologista por acaso porreirinho e visitava-o de quatro em quatro meses. A pagar. Falávamos de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto, que nos interessava a ambos. Acto médico é que não, mas no intervalo medíamos a tensão, o que é extraordinário! Deixei. Deixei também o urologista, os toques rectais não me seduzem, e fiquei-me somente com o dentista, que me sevicia de meio em meio ano, fora os inopinados, como por exemplo agora mesmo que ando refodido das gengivas e vou ao castigo de dois em dois meses, lá se me vai o pé-de-meia. É a crise, é a vida. Um destes dias morro de repente, com um boca que é uma categoria, e ainda vão dizer que foi por por causa de eu ter deixado de falar de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto com o meu ex-cardiologista.

P.S. - Hoje é Dia do Cardiologista. Pelo menos no Brasil.

À espera que anoiteça

Foto Hernâni Von Doellinger

Cruzes, canhoto!

Hoje é Dia Mundial do Canhoto. Portanto hoje celebramos o Demónio. Ou os desajeitados. Ou o talão que não se destaca no livro de recibos, guias ou cheques. Ou o pedaço de lenha para a fogueira, o pau torto, grosso ou nodoso. O arrocho, o toro, o tronco, o toco, a pernada decepada, o cepo. E a mulher do canhoto é a canhota. Que é uma variedade de amêndoa algarvia, de fruto arredondado, com casca dura e miolo elíptico alargado de tonalidade clara. Ou um moinho de água, uma azenha. Ou a espingarda, na tropa. É. A língua portuguesa pela-se por uma boa brincadeira.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

O maior de todos os tempos

Foto Hugo Delgado

Permitam-me que repita o que já aqui escrevi exactamente há um ano e há dois anos, só vou actualizando os números. É que o homem ainda não fechou contas e já vai na sua 145.ª medalha em provas internacionais, entre elas duas olímpicas, cinco títulos mundiais e sete títulos europeus. E o que eu escrevi em Agosto de 2022, e ninguém me ligou, foi: e se parássemos todos para pensar, largássemos por momentos a braguilha ao Cristiano Ronaldo e chegássemos à razoável conclusão de que o canoísta Fernando Pimenta é o maior atleta português de todos os tempos?...

P.S. - Fernando Pimenta nasceu no dia 13 de Agosto de 1989. Faz hoje 35 anos. Muitos parabéns, Fernando! Muito obrigado, Fernando!

À imagem de Deus o criou

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 11 de agosto de 2024

O dia em que envelheci

Sei muito bem o dia em que envelheci. Foi de repente. Sei o ano, sei o mês, sei o dia e até sei a hora, mas tanta exactidão não vem aqui ao caso. Sei o local e sei as circunstâncias. Foi no Hospital de Gaia, numa consulta de medicina do sono, creio que a coisa se chamava ou chama assim. A dado passo da bateria de exames e do minucioso inquérito, a médica perguntou-me, surpreendentemente: - Quando era novo, o Sr. Américo já sentia este cansaço?..
Eu ia caindo de cu. Primeiro. Esta mania de me tratarem pelo meu primeiro nome, Américo, nas consultas e, em geral, em todos os serviços públicos ou privados que exigem a competente apresentação de credenciais. Não sei, chamam-me Américo e eu, que estou tão habituado a chamar-me Hernâni, procuro sempre outro indivíduo ao meu lado, no meu próprio lugar. Sinto-me outra pessoa, um estranho de mim mesmo. Tratar-me por Américo é um privilégio que está reservado ao meus companheiros da escola primária, em Fafe, e mesmo com esses poucos que ainda se lembram de mim nunca sei se é comigo que estão a falar quando falam comigo. O Bergiguinha chama-me Américo com todo o direito, mas diz que chama Américo a todos os homens da minha família. Segundo. "Quando era novo", disse ela. Quando era novo?! Porra, eu ainda sou novo, tentei corrigir gentilmente a senhora doutora, atirando ao ar duas ou três larachas e apanhando-as, a todas, sem deixar cair, disparando-me da marquesa, acto contínuo, num acrobático salto encarpado, com duas piruetas à retaguarda. 
Mas não adiantou. Pelo contrário. A doutora insistia, parecia-me agora que com algum prazer, com uma certa maldade, "quando era novo" para aqui, "quando era novo" para ali, "quando era novo" acima, "quando era novo" abaixo, e quem sou eu para contrariar o veredicto da medicina, a sábia decisão da ciência? 
E foi assim. Nesse dia, naquele preciso momento, fiquei velho para toda a vida, por indicação médica e sem remédio. Eu acabara de fazer 41 anos.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Juventude. De acordo com o nosso Governo, a juventude vai pelo menos até aos 35 anos.

Adopte um e leve dois

Ouça lá! Porque é que não adopta um elefante? Eles andam aí pelos cantos, coitadinhos, depois de terem sido despedidos do circo derivado ao politicamente correcto, modernidades. São desempregados, pobres, abandonados, sujos, aleijados, excluídos, maltratados, elefantes. E agora ninguém lhes pega, por causa da má publicidade: diz que incomodam muita gente. Homessa, Cavaco Silva também, e, mais, não falta quem ande com ele ao colo! Vá lá, hoje é o dia certo, adopte um elefante, ou, olhe, melhor ainda, adopte um casal de elefantes e sinta-se bem a respeito da sua excelente pessoa, é só uma questão de organizar o espaço em casa. E os elefantes ainda hão-se ser moda...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Elefante.

O filho do meio

Hoje é Dia do Filho do Meio. E está bem. É um Dia De tão aceitável e tão palerma como a maioria do Dias De. Parece-me, em todo o caso, um Dia De algo injusto e até um desperdício para as famílias com número par de filhos.

Ponha aqui o seu pezinho

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 10 de agosto de 2024

O homem e o cão (e vice-versa)

Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, haviam de ver. O homem atira a velha bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça que não sei, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola gasta e sebenta, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo!", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais!...", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, matinais frequentadores de oceanos, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado. Chamem o INEM!

Todas as manhãs, portanto. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estou a contar, mas ninguém me atira a bola, graças a Deus. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas. (Não é que isto interesse, mas fez-me lembrar o Kelvin, o outro brinca-na-areia dos bons velhos tempos, e se calhar por isso é que me ri tão mal, amarelo). Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex!...", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O cão chamava-se mesmo Rex, como o cão actor, o cão artista da televisão, e, sem terem nada a ver um como o outro, por acaso até vinha a propósito. O homem, que tomara nota do meu riso, decidiu pôr-me ao corrente, quisesse eu ou não: "É todos os dias a mesma merda, ele gosta, o caralho do cão mete-se no mar e eu depois é que tenho de lhe dar banho, secar e escovar, trabalho filho da puta, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, fode-me sempre..."

O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim, eu dei fé. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Junho de 2013. Hoje é Dia de Brincar na Areia.

A brincar, a brincar...

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

O saco de gatos

Em Fafe, no meu tempo, as pessoas gostavam muito de animais, como por exemplo gatos. Quase todos os lares tinham o seu gato ou a sua gata de companhia, principalmente derivado aos ratos, que também eram muitos e caseiros, mas recebiam visitas. Evidentemente estou a falar da parte de Fafe que me diz respeito e conheço, Fafe dos pobres. Ora, havendo gatos e gatas, havia também ninhadas, porque as coisas são como são e até os bichinhos gostam. Mas alimentar um ou dois gatos, mesmo com sobras, é uma coisa, outra coisa é sustentar uma família inteira de tarecos, ainda por cima largam pêlo como o caralho e nos primeiros tempos, antes de levarem naquele focinho para aprenderem, coitadinhos, cagam e mijam em todo o lado sem respeito nenhum. Que se segue? As pessoas gostavam muito de animais e pegavam na ninhada, deixavam um gatito de reserva, o mais bonito e esperto, e enfiavam os outros todos numa saca de sarapilheira bem fechada e bem atada a uma pedra bem pesada e pegavam na pedra, na saca e nos gatos e atiravam tudo ao rio, que eram vários e lingrinhas. Não sei se Fafe conserva esta curiosa tradição. E quem diz Fafe, diz Portugal regra geral...

Esfola gatos e mata cães

Diz o povo antigo, na sua proverbial sabedoria, que quem é de Guimarães esfola gatos e mata cães. Eu parece-me que devia ser proibido...

Sete vidas

Cada vez que morria, o gato sabia que era a brincar. Chegou à sétima e fodeu-se!

Gato-sapato

Faziam dele gato-sapato. Quarenta e dois, biqueira larga.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Gato. Que por acaso também é no dia 17 de Fevereiro.

O gativista

Foto Hernâni Von Doellinger

Zé Cão, boxevista olímpico e invicto

Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet e tão caro quanto excelente, às vezes escusado, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho de categoria a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que aquele, isso ainda hoje me parece. O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos. Era altíssimo, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço e sempre agarrado à caneca de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande.
Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gosta de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas idas ao Porto, ao Royal e ao Derby, velhos cafés de putas na Rua Chã, quase em frente um do outro, e o bom do Zé ia lá para aliviar o tesão a preço combinado, e uma famosa ocasião teve mesmo de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério, na parte de cima da Ponte de Luís I, ali ao pé, discutindo exactamente por causa das senhoras. E o Zé Cão ganhou. Ganhou, evidentemente, nem podia ser de outra maneira, o Zé Cão era nosso. E a piada a espremer da historieta era tão-só fazer o Zé Cão dizer "boxevista", isto é, "bocsvista" ou "boquessevista". A mando do Valença, o Zé Cão dizia, e tornava ao combate, e fazia os gestos como foi, e disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, e era um campeão sem sair do seu canto, desajeitado, quase caindo, porém olímpico e ainda invicto, a lutar por merecer mais um quartilho de verde tinto que uma alma caridosa fizesse o favor de lhe pagar...
O Zé Cão lutava um faz-de-conta tão escangalhado e convincente que parecia mesmo que estava no ringue a enfrentar-se ao peso-pesado cubano Teófilo Stevenson, por exemplo, o maior "boxevista" amador de todos os tempos, dando-se o devido desconto ao sentido da palavra "amador" em certos países naquela altura. Stevenson - triplo campeão do mundo e medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Munique 1972, Montreal 1976 e Moscovo 1980 - sempre recusou tornar-se profissional, por opção ou imposição, Havana é que sabe, rejeitando os sucessivos contratos de milhões de dólares com que os EUA lhe iam acenando. Morreu em 2012, infelizmente sem se ter tirado a limpo se ele era de facto melhor do que Muhammad Ali, como alguns puristas defendiam e ainda defendem.
Lembro-me tão bem. O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom, que era dele que eu vinha falar. E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração. E também lhe ponho uma medalha ao peito. De ouro, pois então, Zecão!

Uma borboleta, uma abelha

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 4 de agosto de 2024

A sostra, a lostra e a ostra

Talvez por ter nascido em Fafe, e pobre, e nos finais da década de cinquenta do século passado, conheci primeiro as lostras e as sostras e só mais tarde é que soube das ostras. Não estou a queixar-me da minha sorte, é apenas uma confissão que eu precisava de fazer há tantos anos, e agora, dito isto, fiquei em paz. Na verdade, "as ostras", "as lostras" e "as sostras" até são expressões aparentemente parónimas - ora tente lá pronunciá-las, uma e depois a outra, a ver se não soam à mesma coisa -, mas resultam muito diferentes no que significam.
Comecei naturalmente pelas lostras, ou não fosse eu filho da minha mãe, que nos chegava a roupa ao pêlo com assinalável pertinácia. Bufardos, sopapos, bofetadas, bofetões, galhetas, lamparinas, estampilhas, lostras para todos os efeitos, aprendi isso tudo à minha custa, mesmo antes de entrar para a escola, que em nossa casa era uma fartura pelo menos nesse departamento e eu era muito bom para sinónimos...
Sostras, eu também sabia. Desde pequenino, isto é, desde que tive noção. Sostras. Mulheres sujas e preguiçosas, badalhocas, regra geral o que elas se chamavam umas às outras quando disputavam homem ou coisa parecida. Putas, putéfias, vacas, vaconas, cabras, coirões, coironas. Fazia parte do léxico fafense metido a cotio, era o fafês no seu melhor. Aliás, a palavra sostra, para mim, já naquela idade, trazia com ela qualquer coisa de sexual, de lascivo, de atesoante, dito simplesmente. E, a esse respeito, é preciso que se note que eu, apesar de padreca, fui aquilo que se diz um rapaz precoce, outra palavra que por acaso também me arrebitava sobremaneira, mas eu, não desfazendo, ficava incomodado por tudo e por nada.
Já ostras, o mais parecido que eu lhes conhecia por aquela altura, sem sequer ter ideia da ligação, eram sardinhas fritas com arroz de tomate, e que bem que me sabiam. Assim pessoalmente, as ostras foram-me apresentadas teria eu talvez 24 anos, em Bordéus, França. Casado de fresco, cheio de vaidade, fui lá mostrar a minha bela mulher às minhas queridas tias São e Dores, que não puderam vir ao nosso casamento. Levei também a minha mãe e o meu irmão Lando e merendeiro para um regimento, fomos de comboio, de wagons-lits, num expresso do oriente para remediados e cagarolas, e tivemos um Natal bem porreiro.
Foi por aqueles gloriosos dias que eu finalmente provei as ostras, essa requintada francesice, assim achava, vinham nuns cestinhos muito jeitosos, deram-me a ferramenta para a mão, aprendi a abri-las sem desastre e a comê-las de imediato só com um esguicho de limão, coisa tão boa, coisa tão mar, em Bordéus, França, com champanhe evidentemente, o que eu andei para ali chegar, 24 anos de vida, e as ostras eram de Setúbal, Portugal, estava lá escrito, se calhar foram comigo no comboio, é preciso ser-se muito parolo, eu. E a verdade é só uma: as ostras eram realmente tão extraordinárias como sardinhas fritas com arroz de tomate, sardinhas compradas na Mocha, com sítio à beira da estrada, em frente ao tasco do Paredes e ao lado do Zé Manco, dividindo praça com os tremoços da Marrequinha e as castanhas assadas da Maria Barraca, consoante a época - foi logo ali no estrangeiro que eu percebi pela primeira vez a inegável relação.

E pronto. Passaram-se quarenta anos, a minha mulher continua bela e eu ainda vaidoso e cada vez mais apaixonado por ela, coisa mais natural do mundo. Hoje é Dia da Ostra e portanto vou assar bacalhau no forno, como fazia a minha mãe e como faz tão bem o minha irmã Nanda. Comidinha caseira, antiga, farta, saborosa graças a Deus. Limpinha. À moda do tempo em que as palavras eram livres de serem ditas...

Mobiliário urbano

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 3 de agosto de 2024

Faltou-nos o breakdance

Nasci no Santo Velho, em Fafe de antigamente. Na minha rua, que era um largo de liberdade e agora é dois cruzamentos com semáforos, saltávamos à corda e a fogueira, jogávamos ao espeto, ao pião, à macaca, ao mamã-dá-licença?, ao esconde-esconde, à cabra-cega, às sameiras, ao moche, à coiada, à lerpa e ao tene. Infelizmente não jogávamos ao breaking, senão estaríamos agora em Paris a lutar por uma medalha...

A moça mostrava a coxa

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Nietzsche passou por Fafe, de bicicleta

A vila de Fafe fervilhava de tascos na segunda metade do século passado. Eram porta sim, porta não, provavelmente caso único a nível mundial, coisa talvez digna do Guinness - casinos e hotéis em Las Vegas, tascos e tascas em Fafe. Tascos, tabernas, casas de pasto e quatro ou cinco pensões-restaurantes do melhor que existia em Portugal para quem percebesse realmente do assunto, porque em Fafe comia-se e come-se bem e bom. E quanto a beber, então nem se fala. À mesa, portanto, nada a apontar - antes pelo contrário. Já no que diz respeito à cama, isto é, a locais para pernoita, naquele tempo estávamos muito mal servidos. Se aparecesse assim algum acontecimento em grande, fora do ramerrame quotidiano, um evento que trouxesse gente de fora com intenção ou obrigação de ficar por cá de um dia para o outro, não havia onde meter o povo todo, a não ser que se inventasse. E inventava-se.
Com a Volta a Portugal em Bicicleta tinha de ser. Antigamente as etapas da Volta costumavam começar na mesma terra onde tinha terminado a etapa do dia anterior, e Fafe fazia parte do roteiro. Os fafenses recebiam muito bem os ciclistas e toda a caravana de uma forma geral. Os prémios eram muitos e oferecidos pelo comércio e pela indústria locais. Taças, medalhas, electrodomésticos, bicicletas, cortes de tecido, cortes de cabelo, peças de roupa e de louça, chapéus de palha, guarda-chuvas, produtos de higiene e limpeza, canetas, envelopes com dinheiro e múltiplas inutilidades, que passavam para aí uma semana em exibição na montra da Electra, se não estou em erro. Em Fafe, se um ciclista da Volta não chegasse, vamos lá, nos dez primeiros lugares, então mais valia cortar a meta em último. O último ciclista a chegar a Fafe ganhava uma magnífica candeia novinha em folha com uma certa quantia metida lá dentro. E os meus olhos ficavam-se todos os anos na candeia tão brilhante e propícia a sonhos. Se eu fosse ciclista, palavra de honra, havia de dar sempre o máximo para ser o último!...
Os prémios eram entregues aos responsáveis das equipas numa aprazível sessão nocturna, no Jardim do Calvário, porventura com um ou outro "apontamento musical" e decerto garbosamente apresentada pelo Landinho Bacalhau ou pelo Zé Fala-Barato, ou se calhar por ambos, com umas larachas pelo meio, não devo estar a dizer asneira nenhuma.
E onde ficavam a dormir os ciclistas? Algumas equipas, mais exigentes e endinheiradas, desciam até Guimarães, gabo-lhes o gosto. Em Fafe, esgotadas as poucas camas da hotelaria convencional, e aqui é que entra a invenção, instalações mais ou menos públicas eram requisitadas e, se necessário, transformadas em dormitórios para acolher atletas e acompanhantes. Por exemplo, a camarata dos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, serviu de pouso, em anos diferentes, às equipas do Baixo da Banheira e do Académico do Porto, do nosso Chico Marinho. E eu andando por lá.
Em 1967, os belgas da Flandria vieram à Volta a Portugal e Fafe instalou-os no palacete ao lado dos Bombeiros, em frente aos Medons, e que já serviu de museu da imprensa mas na altura não servia para nada. O Palacete com maiúscula era o outro, o dos Dantas, do outro lado dos Bombeiros, este era apenas um palacete. Era um casarão abandonado, uma espécie de casa assombrada, decadente inclusive em sentido literal, com o espaço exterior, dentro dos portões e do alto gradeamento, entusiasticamente entregue ao capim descontrolado, à folhagem podre e fedorenta e às silvas amazónicas que assustavam. Não era normal os estrangeiros virem correr à nossa Volta, e decerto por isso a mordomia. O interior do edifício terá sido sacudido e arejado, despejado de ratos e limpo das teias de aranha, só foi preciso meter camas, trigo limpo, farinha amparo.
A Volta a Portugal acabou e nós tínhamos de ir lá dentro, ao palacete, ver como é que aquilo era. Nós, quero dizer, o nosso grupo de miúdos, ali do Santo Velho e das redondezas, comandados pelo intrépido Daniel Carcereiro, que era apenas um pouco mais velho mas tinha um enorme carisma e sentido de liderança, embora eu na altura não soubesse o que isso queria dizer e nem sequer conhecesse estas palavras.

O Daniel, é preciso que que note, chamava-se Carcereiro por causa do pai, que era o responsável pela cadeia de Fafe. A cadeia mesmo, o velho edifício granítico com grossas grades de ferro quase ao nível do chão através das quais os presos conversavam com familiares, amigos ou simples passantes, com espaço até para enfiarem as pernas cá para fora, para a rua, as pernas em liberdade, balançando-se, eventualmente também as mãos e o nariz, às vezes as orelhas, uma de cada vez, mas o resto do corpo não. Senão, nem era cadeia nem era nada.
O sítio é exactamente o mesmo onde está hoje o Palácio da Justiça, inaugurado a 13 de Outubro de 1963, dia em que também abriu portas a nova cadeia comarcã, com entrada pela actual Rua Prof. Manuel José da Costa, nas traseiras do estádio e junto à piscina municipal. E a família do Daniel mudou-se para lá também. O edifício já serviu entretanto como posto da GNR e agora não sei para que serve, mas essa parte sabem vocês muito melhor do que eu.

Portanto, deixámos passar uns dias, para disfarçar, e invadimos o palacete. O Daniel tomava conta de nós, nunca permitiria que algo de mal nos acontecesse. O Daniel tinha isto, tão singular: apesar de aventureiro, brigão e valente, desafiando sem medo os maiores do que ele, fossem quantos fossem, era de uma inesperada e desarmante bondade em relação aos miúdos mais novos. Ele era o nosso capitão e o nosso protector. Sempre atento e cuidadoso. E a invasão foi um sucesso.
Fizemos trinta por uma linha, deixámos tudo em pantanas, corremos todas as divisões de todos os andares até à mansarda, subindo e descendo escadas que faziam lembrar castelos, destruímos almofadas em guerras sem quartel, desengonçámos irremediavelmente camas e divãs, inutilizámos lençóis para fazermos de fantasmas, tudo a uma velocidade alucinante, com milhares de trambolhões à mistura, mas felizmente sem vítimas a lamentar. Na verdade, não foi tanto assim, mas assim contado tem muito mais piada. E a invasão foi mesmo um sucesso.
Ainda por cima encontrámos espalhados pelo chão imundo restos da alimentação dos ciclistas. Cubos de açúcar, quadradinhos de marmelada e outros doces e geleias, muito bem cobertos por milhões de formigas, que desbaratámos organicamente, isto é, ao pontapé e chibatada, seguindo as rigorosas orientações higiossanitárias do Daniel, que cheirou aquilo e decidiu, dando o exemplo: - Ainda está bom. Bora lá comer, que o que não mata, engorda! - E não podia ser mais sábio. Quase tão sábio como Nietzsche, o Friedrich, que dizia "O que não nos mata torna-nos mais fortes", isto certamente depois de ter passado por Fafe.

O Daniel foi um razoável jogador de futebol, dos de barba rija, porém fez carreira como oficial de justiça, estou em dizer. Não convivemos há mais de trinta ou talvez quarenta anos, mas nunca me desapontou, isso é garantido. Estou-lhe grato, tenho por ele uma admiração antiga, e nunca lho disse. Confidenciam-me que o Daniel Carcereiro continua como era, um ser humano especial, com o seu feitio, cuidado!, mas disponível e leal, fiável, generoso, atento às injustiças e presente aos amigos, ainda e sempre sportinguista, o seu ponto de imperfeição, e possivelmente um pouco mais manso. Enfim, um comandante na reforma.
Moral da história: Tony Houbrechts, o belga da Flandria, ganhou a Volta a Portugal em Bicicleta de 1967. E eu comi-lhe o almoço.

P.S. - Texto publicado originalmente no meu blogue Fafismos e repetido no Tarrenego! no dia 28 de Agosto de 2023, sob o título "Era uma vez Fafe e a Volta a Portugal". Entretanto, o Pedro Dantas teve a amabilidade de informar-me de que o palacete aqui contado tem dono, actualmente, e que "é um lugar belíssimo". Antes assim. Quanto à Volta, parou ontem em Fafe, mais uma vez, e foi um fim de mundo de povo. A romaria de antigamente, mas agora em moderno...