domingo, 31 de outubro de 2021

E quem me garante que uma hora tem 60 minutos?

Eu tinha dois relógios indiscutivelmente atrasados uma hora, isto já há coisa de meio ano. Eram o relógio do carro da minha mulher e o relógio aqui do "escritório". A minha mulher e o meu filho chagavam-me a cabeça - ó marido, ó pai, que vergonha, relógios atrasados uma hora, que vergonha, que vergonha, se ainda ao menos fossem adiantados, porque é que não acertas as horas, ó marido, ó pai!?...
- As horas são do Senhor, o Senhor é quem sabe quando é a hora, ficaremos de horas acertadas quando for a vontade do Senhor - respondia eu, que não me consigo deslargar desta irremediável costela sacrista, ó mulher, ó filho...
 
E hoje deu-se o milagre, vou ligar ao Vaticano. Acordei e o relógio do carro da minha mulher e o relógio aqui do "escritório" estavam certíssimos, mais TMG era impossível. Deus é grande e o tempo está uma merda, não está?

Limpeza acima de tudo

Mudou a hora esta noite? Muito bem. E pô-la para lavar?

O destino marca a hora

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 30 de outubro de 2021

O Halloween, essa tão nossa ancestral tradição

Os Reis, já seremos tão poucos a lembrarmo-nos, cantavam-se de porta em porta. Na rua. Fazia um frio de rachar e éramos crianças lamentavelmente em roupa regrada e calçado malpropício, desagasalhadas da vida mas livres e felizes ao menos uma noite em cada ano. As palavras saíam-nos tremidas, vaporosas, condensadas, pedras de gelo às vezes, num bater de dentes que, regra geral, passava muito bem por acompanhamento a castanholas ou reco-reco (ou requerreque, em fafês), até parecia habilidoso arranjo musical feito de encomenda. Éramos portanto crianças, pobres, de porta em porta, na rua gelada, a abençoar a noite dos adultos, se possível burgueses e talvezes. Estão a ver o Halloween? Os nossos Reis eram isso mais ou menos, mas a generosidade morava no lado de fora. E o papel higiénico era um luxo e só para limpar o cu dos ricos.

Cantávamos:
"Do dia cinco prò seis,
nós vimos cantar os Reis..."

Cantávamos:
"Correi, ó pastores,
que a noite está bela,
vinde ver Jesus
na formosa estrela."

Cantávamos:
"Aqui estão os Reis à porta..."

Cantávamos:
"Olhei para o céu,
estava estrelado,
vi o Deus Menino
nas palhas deitado.
Nas palhas deitado,
nas palhas esquecido,
filho duma rosa,
dum cravo nascido."

Cantávamos:
"Pastorinhos, pumpum,
do deserto, pumpum,
vinde todos a Belém.
Pumpum.
Vinde ver, pumpum,
o Menino, pumpum,
que Nossa Senhora tem.
Pumpum."

Cantávamos:
"Quem diremos nós que viva
nas folhinhas do codesso,
viva o dono desta casa
que eu por nome não conheço."

E também cantávamos:
"Vinho na pipa,
couves na horta,
se não nos der nada,
cagamos na porta."

É. Estão a ver o Halloween? O típico Halloween português? Os nossos Reis eram isso mais ou menos. 

Pero que las hay

Foto Hernâni Von Doellinger

Como o mundo é pequeno (e um bocado idiota)

- Perdoar-me-á que o interpele assim sem mais nem menos, sem o conhecer de lado nenhum, mas o caro senhor é um bocado idiota, não é?
- Sou, com efeito, um bocado idiota. Mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado idiota.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado idiota por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado idiota por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado idiota mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! Quase que éramos irmãos, não é?..

(A propósito. O extraordinário romancista russo Fiodor Dostoievski terá nascido no dia 30 de Outubro de 1821, embora haja quem diga 11 de Novembro de 1821. Dostoievski, que era engenheiro militar, escreveu, entre outras inúmeras obras-primas, "Crime e Castigo", "Os Irmãos Karamazov" e "O idiota". E é por isso.)

Espadalhão

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

O fim do mundo em cuecas

Gosto destes filmes e destas séries da moda que contam o fim do mundo, os diversos modelos de fim do mundo, e a luta heróica dos sobreviventes. Invasões marcianas, asteróides desgovernados, pandemias assassinas, ataques de mortos-vivos, catástrofes de proporções bíblicas, apocalípticas, deuteronómicas, cenários dantescos, a estrada da morte, a cinza, a escuridão, a asfixia, o nada, o-drama-a-tragédia-o-horror. O planeta desaparece e, no seu regenerador desaparecimento, traz à tona os melhores dos melhores de todos nós, americanos por certo. O pai-herói, a mãe-coragem, o bebé-milagre, o Sepúlveda-Taberneiro, de quem ninguém sabia há mais de quarenta anos, desde que pôs os cornos à mulher no Sabugal e fugiu com a espanhola da casa de alterne. Para a América, Kansas City, Missouri. Dão bons títulos nos jornais.

Estes filmes fazem-me acreditar na redenção da humanidade. Os sobreviventes são a esperança num futuro melhor. Isto por um lado. Por outro: mas qual futuro e quais sobreviventes? Se o mundo acabou, como é que há sobreviventes? 

P.S. - No dia 30 de Outubro de 1938, Orson Welles transmitiu a versão radiofónica da "Guerra dos Mundos", de H. G. Welles, simulando uma reportagem em directo sobre a invasão da Terra por marcianos. Os americanos acreditaram que era verdade. O medo paralisou três cidades e houve pânico principalmente em localidades próximas de Nova Jersey, onde o programa era feito e onde tudo alegadamente acontecia.

Interlúdio fotográfico 363

Foto Hernâni Von Doellinger

O cão de Astérix

O cão de Astérix chamava-se Jolly Jumper. E uma vez foi ao país dos sovietes.

P.S. - Astérix nasceu, por assim dizer, no dia 29 de Outubro de 1959, no primeiro número da revista "Pilote". O primeiro álbum, "Astérix o Gaulês", foi editado em 1961.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Um país sem tintins

Tintim fez 92 anos em Janeiro. E bem fodido estaria se fosse português. Provavelmente com uma reforma de miséria e esmolada ao cêntimo, encaixotado num lar de idosos clandestino, proibido de ir estorvar para a hemodiálise ou de sequer bater à porta das urgências. Teria certamente fome e vergonha por ver o seu país entregue à banca corrupta e a escritórios de advogados e contabilistas estrangeiros e mentecaptos. Choraria com o triste espectáculo dado pelos mal-amanhados títeres que fazem de conta que são governo e oposição em Lisboa e nem um orçamento conseguem parir. Pediria a morte medicamente assistida, se pudesse pagar, mas não pode.
A sorte de Tintim é que ele é belga. Em Portugal não há tintins. 

Desenhos assim-assim

Há desenhos realmente animados e há desenhos, digamos assim, um pouco mais aborrecidos. É como tudo.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Animação.

Como o destino

Nisto das idades, a terceira costuma ser de vez.

P.S. - Hoje, 28 de Outubro, é Dia Mundial da Terceira Idade.

Era uma vez...

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 26 de outubro de 2021

A casa do Silva

Matosinhos tem a Casa da Arquitectura, a Casa do Design, a Casa de Chá, a Casa de Santiago, a Casa do Bosque e a Casa da Juventude. Nomeadamente. Mas não tem a Casa do Silva. O Silva é velho e desempregado. Mora ao relento. Em Matosinhos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Canábis ao pé da porta

Foto Hernâni Von Doellinger

Do outro lado da minha rua havia uma daquelas pequenas lojas tipo "regional gourmet". Azeitonas em frasco, cogumelos em frasco, meles em frasco, geleias em frasco, licores em frasco, frascos em frasco, dois presuntos em fraco, azeites e vinhos em caro, prateleiras um fiasco. Num benévolo gesto de boas-vindas, mal abriu o estabelecimento fui lá cheirar e avisar que o conceito é uma treta e que gourmet a sério é em minha casa, mesmo em frente, porque aqui a comida é muito boa, e gourmet deveria ser isso, mas não estamos abertos ao público. O gourmet - a ver se eu me sei explicar - quer-se da boca para dentro e não da boca para fora.
Estas lojinhas abrem mas não vendem nada. Abrem por abrir. E sobretudo fecham. Fecham muito bem. São "regionais" porém franchising, very tipical e very vazias, de produtos e clientes. O toque de "qualidade" é dado em palavras "estrangeiras", o que só abona a favor do produto made in Portugal. A loja da minha rua tinha primeiro uma menina, que passava a vida na ombreira da porta a fumar, a fumar, a fumar. E de repente hibernou. A loja. Mês e meio depois reabriu, já sem a menina mas com um rapaz. Que passava a vida na ombreira da porta a fumar, a fumar, a fumar. Nas costas, os dois presuntos pendurados no cabide tisicavam e agradeciam - e assim se produz o genuíno fumeiro nacional.
Passou-se uma semana e a lojinha encerrou de vez: veio uma carrinha limpar as escanzeladas prateleiras, três sacos de plástico bastaram e lá se foi mais um posto de trabalho, por assim dizer, que é o que a mim me importa. Fico infeliz por ter razão: o conceito era realmente uma treta. Esta gente não sabe o que é massa com bacalhau e o prato a esbordar...

Entretanto. Antes e depois da sua lastimável fase "regional gourmet", a lojinha do outro lado da minha rua foi quase tudo, por breves temporadas e com fracasso garantido. Butique de média costura, sapataria fina, loja de animais, bijuteria e outras inutilidades, escritório, despensa, garrafeira e outros souvenirs, recepção de alojamento local e até agência de viagens que nunca abriu, mas a mim cheirou-me sempre ao mesmo: lavandaria.

Nem de propósito, a lojinha é agora um posto de lavagem self-service para cães. E na porta ao lado acaba de abrir um estabelecimento para venda de "cannabis legal" e outros "produtos derivados de cânhamo", como, por exemplo, "creme de avelãs para barrar". Reconheço a mudança de paradigma: são dois negócios com irreprimíveis potencialidades. Vejo-lhes futuro. Principalmente ao dos cães, porque nasceu no tempo e no país certos. Um tempo e um país em que os animais são de estimação, mas as pessoas não. Já quanto à canábis, vamos lá ver: não sei se o pessoal aqui da zona não andará de momento mais interessado em algo, como é que se diz, mais pesado e ilegal, vá lá...

Faça você mesmo

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 24 de outubro de 2021

Massas

Gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Também concordava com a vacinação em massa. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência. 

P.S. - Hoje, 25 de Outubro, é Dia Mundial das Massas.

As extraordinárias descobertas da ciência

Os cientistas descobriram: os neutrinos têm massa. Os portugueses, de uma forma geral, não!  

Um conto de Natal

Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note. 

O segredo está na pasta

Nem no molho, nem na massa. O segredo está na pasta. Uma pasta de segurança, diplomática, confidencial, fechada a sete chaves.   

Testes em massa

O Governo anunciou e promoveu testes em massa. Sim, evidentemente testes em massa, estou absolutamente de concordo. Mas testes em arroz? E testes em batatas? Que é deles?... 

Que uma coisa pensa o cavalo

Foto Hernâni Von Doellinger

Para todo o serviço

Apresentou-se às inspecções. Puseram-lhe um carimbo: "Apto para todo o serviço". Foi aí que ele começou a desconfiar...

P.S. - Hoje, 24 de Outubro, é Dia do Exército Português.

What?!...

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Chamam-lhe Protocolo de Manchester

Aqui atrasado passei dois dias na Urgência de um dos nossos maiores hospitais públicos. E fiquei com esta impressão, que preferi deixar amadurecer até hoje: no caos em que "funciona", a Urgência é uma indignidade para os doentes, incluindo os que vão só para o lanche ou os hipocondríacos com assinatura; é uma indignidade para os acompanhantes dos doentes, incluindo os mirones e outros estorvadores; é uma indignidade para as enfermeiras e para os enfermeiros que lá trabalham até à exaustão; é uma indignidade para as médicas e para os médicos que fazem o que podem e sabem, espreitam cortinas à procura de uma cadeira vaga e parecem baratas tontas no meio daquele circo; é uma indignidade para o hospital (um dos nossos maiores, já disse), para Portugal e para a Humanidade. Uma indignidade e uma violência. Entre mortos e feridos, salvam-se as auxiliares, que cantam e dançam, contam telenovelas e anedotas umas às outras e ao público em geral, destratam toda a gente e mandam naquilo tudo.

Sei que tenho o melhor serviço nacional de saúde do mundo. Dou-lhe uso em último caso, mas frequento-o de olhos abertos e coração grato. Querem saber o que é o nosso Serviço Nacional de Saúde? Não são taxas moderadoras e isenções. São exactamente as pessoas: os auxiliares, os médicos e os enfermeiros, que todos os dias trabalham no arame e sem rede, que já lhes tiraram há muito, e fazem "funcionar" uma coisa que na verdade já nem existe, ou, se quisermos ser bondosos, vai morrendo aos bocadinhos. 

A passada quarta-feira deveria ter servido para assinalar o Dia Global da Dignidade. Não sei se serviu nem sei se assinalou, mas lembrou-me o textinho acima, que publiquei originalmente no dia 17 de Abril de 2014. Já se morria nas urgências - eu vi -, e mais não havia pandemia, nem "epidemia de gripe", nem "surto gripal", nem o "caos" com aspas com que os políticos gostam tanto de jigajogar. (Os políticos e os jornalistas pelam-se por brincar às escondidas atrás das aspas.) Era apenas o caos normal, o caos do dia-a-dia numa Urgência de carne e osso - em exibição num hospital perto de si.

Chapéu de palha faz sombra

Foto Hernâni Von Doellinger

Levados, levados sim!

A Mocidade Portuguesa era uma organização juvenil do Estado Novo e, em certo sentido-descansar-à vontade, complementava ou concorria na paz do Senhor com os escuteiros de que a Igreja Católica resolvera tomar conta, pelo sim e pelo não. Para os devidos efeitos, e a bem da Nação, a Mocidade Portuguesa era fascista, embora a rapaziada não fizesse ideia, e os escuteiros eram, nas desbragadas palavras do humorista brasileiro Juca Chaves, "um bando de garotos vestidos de idiotas, comandados por um idiota vestido de garoto". Consta que Juca Chaves teve de pedir desculpas pelo abuso. A Igreja, não.
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional, grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos, salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide, simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas, associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos, o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital, outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela Liberdade. Foram levados, torturados e assassinados pela Pide.

O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio. Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por favor, nem que seja mentira.

A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou estandartes, tinha fardas catitas, toques de clarim e toque de caixa, cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação nazi-fascista e hino privativo, Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim. Tinha também umas mochilas de lona verde-acastanhada muito jeitosas e tinha tendas, pás, picaretas, cantis e acampamentos, e eu invejava o mundo de aventuras daquela moçarada. E tinha a Chama, assim com capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e à volta de uma fogueira com as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho, ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Uma vez houve uma Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje esmagado pelo anfiteatro da Biblioteca Municipal de Fafe, o que demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola, actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás, de passo certo, levado, levado sim...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época, gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho havia uma nora desactivada, mais à frente uma mina já com motor, creio que do Sr. Mijão, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro e corresse a esticar-me o orelhame.

Queria também confessar o que se segue, porque esta memória não me larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho, esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que jeito. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é muito bem feito.

A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas, as cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar assisti a uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês.

(Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifício" ou somente "Servir". Ou Sabrina. Pois. E as SS eram a Segurança Social do Terceiro Reich, Hitler chamava-se assim para não se confundir com Hernâni e o Z não é de Zorro mas de Zeferino. A mim faz-me uma certa diferença: o Zorro sou eu, desde os livrinhos do Marreca, e Zeferino realmente não me dá jeito nenhum.)

P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Setembro de 2017.  

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

No tempo em que as pessoas falavam

No tempo em que as pessoas falavam, as paredes tinham ouvidos. Mas as pessoas falavam, mulheres e homens, porque era preciso, falar era respirar, e não vai assim há tanto tempo. Os cafés, as mesas de restaurante costumavam ser sítios de conversa, de tertúlia, de crítica, de protesto, de esgrima de argumentos. Ainda os nunos rogeiros e os marcelos rebelos de sousas não tinham sido inventados pela televisão e já nós sabíamos tudo de tudo, primeiro no Peludo e depois no Peixoto, evidentemente em Fafe. Futebol, política, Mário Soares e Álvaro Cunhal, pesca e caça, religião, padres fodilhões, música, alterações climáticas, vinho, teoria da relatividade, teorias da conspiração, medicamentos, bolo com sardinhas, gajas e automóveis, festival da canção, rácios bolsistas e sobretudo motorizadas, Zundapp vs. Sachs, sabíamos na ponta da língua e cada qual dava a opinião que se impunha, a opinião definitiva.
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros.
Nos restaurantes, o mesmo desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes...
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do 4-1-3-2 de Jorge Jesus, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto, estão vazias: já disseram tudo e não era nada.

(Atenção! As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via ao longe uma ou duas vezes ao ano...)

P.S. - Texto publicado originalmente no dia 17 de Agosto de 2016. A chamada Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) foi criada no dia 22 de Outubro de 1945.

Só destes, tenho sete 156

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Low cost e sem bicho

Na beira da estrada, nacional treze, topo de Portugal, o letreiro em cartão canelado castanho recortado às três pancadas e infantilmente colorido, porém sem erros: "Fruta low cost".
Parei. Perguntei:
- Esta fruta é mesmo low cost?
- Low costíssima, meu caro senhor. Se encontrar fruta mais low cost, devolvemos-lhe o dinheiro. É o lema da casa...
- Qual casa?
- A carrinha, o toldo...
- E a como é o quilo?
- Da carrinha ou do toldo?
- Da fruta low cost...
- Cinco euros a caixa.
- A caixa?
- A caixa.
- Com fruta?
- Com fruta.
- Com bicho?
- Sem bicho.
- Francamente, não acho lá muito low cost...
- Olhe que mais low cost do que isto não há...
- Por acaso, ali atrás, coisa de quinhentos metros, era mais low cost...
- Mas com bicho... 
- Sem bicho.
- Dou isso de low cost, quer-se dizer, mas é preciso ver a qualidade do produto. Como diz o nosso povo: às vezes o low cost sai high cost...
- Que interessante conversa! Agora que já nos entendemos, diga-me lá sinceramente: cinco euros a caixa, com fruta, sem bicho, é mesmo o mais low cost que me pode fazer?
- É preço de tabela, indexado à cotação do Brent, meu caro senhor. Amigos amigos, negócios à parte: se eu lhe levasse mais low cost, entraria em deficit, certamente em default, e estaria outra vez com a troika à perna, isto é, à leg...
- Nesse caso, arrivederci!
- Não venhas tarde...  

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Fevereiro de 2017. Hoje, 21 de Outubro, é Dia Internacional da Maçã.

Na minha rua passa o mar 113

Foto Hernâni Von Doellinger

Alma de poeta

Os meus dentes saem-me à alma. São sensíveis, disse-me o dentista.

A raiz ao pensamento

Quando o poeta disse "Não há machado que corte", levaram-lhe logo uma serra.

Como se...

Era efectivamente um poeta. Segredava-lhes ao ouvido, de voz pisca e olhos tremelicantes: - Beijo-te como se te beijasse...

P.S. - Hoje, 20 de Outubro, é Dia do Poeta.

Vida de cão 554

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Hoje quero a minha gemada

Conhecia-os de vista. De passar pelas montras ou das mesas do Peludo, mas nunca me tinham sido apresentados. Até que uma vez o meu pai trouxe meia dúzia para casa. Vinham naquela caixinha de papel, obra de engenharia feita na hora, ali mesmo aos olhos do freguês, com a habilidade e o requinte de quem constrói um avião a jacto. Se me estou a lembrar bem, havia, naquele tempo, os bolos de arroz, as bolas de berlim, os queques, os jesuítas, os caramujos, os mil-folhas, as natas e os cocos. As tíbias apareceram depois, já na era das minissaias. O meu pai chegou muito tarde "da música" e se calhar os pastéis vinham por isso, como pedido de desculpas, para adoçar a boca à minha mãe. Não tenho a certeza. Era pequeno demais para então perceber o que agora sei tão bem. Mas gostei da festa que foi: acordámos - a Nanda, o Nelo e eu -, sentámo-nos todos na beira da cama da frente, ao lado da nossa mãe, provámos apressados a novidade, o nosso pai fez-nos rir como de costume e fomos felizes. Então pastéis era aquilo? Era bom. Para mim, quase tão bom como uma côdea de broa coberta com açúcar amarelo, e já lá irei.

Fafe era um terra de antonomásias, estoufarto de dizer. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, a Quelha, o Santo e o Café, que era o Peludo e que na verdade se chamava Cine-Bar, eventualmente dada a sua proximidade e até uma certa ligação ao Teatro-Cinema e à família Summavielle. Mas cafés, tascos e afins havia muitos. Uma mão-cheia de cafés, e tascos até dar com um pau, para ser mais preciso. Pastelarias, salões de chá ou snack-bares é que nada, até aparecer o Dom Fafe, mesmo no centro da vila, coisa fina e para clientela sem gases. O Dom Fafe, respeitando a tradição, passou a ser "o" Snack-Bar.

Eu era calisto. Calisto televisivo. A preto e branco e com muitos pedimos desculpa por esta interrupção. Para me fazer pagar a moina, o Sr. Avelino do Café, que era o Hoss do "Bonanza" em pessoa menos o chapéu alto, entregava-me umas moedas e mandava-me à cozinha do Hospital buscar uns enormes tijolos de gelo que ele depois partia e metia no barril de tirar finos (imperiais, se lido em Lisboa). No fim do recado dava-me o troco? É o davas. Oferecia-me um pastel? Fodias-te. Eu tinha para aí sete anos, o meu pai ainda não tinha trazido pastéis para casa e o Sr. Avelino punha-me à frente a merda de um cimbalino. Sete anos, e ele dava-me um café (bica, se lido em Lisboa). Se ainda ao menos fosse um cigarro!...
Eu e o Sr. Avelino, o tempo haveria de fazer-nos bons amigos, mas nunca lhe perdoei a desfeita do café.

Não sou de doces. E, dos pastéis que o meu pai trazia para casa, o que eu gostava mais era da festa, do riso. Daquela meia hora extra fora da cama. Da sensação de família e fartura, da felicidade antes do sono. Porque o meu doce preferido era outro: era a côdea de broa, "grande daqui até ao céu", enfiada às escondidas na lata do açúcar amarelo e comida na clandestinidade do fundo do quintal. Subia a um banco para subir à mesa da cozinha para chegar ao armário, abria a lata, passava o pão, fechava a lata e saía dali a cem à hora mas com mil cuidados para não entornar o "recheio". Côdea de broa com açúcar amarelo, isso, sim, era o meu bolo. Havia lá coisa melhor no mundo!? Por acaso até havia: era a gemada. Gemada simples e honesta: gema de ovo batida numa malga com muiiiiiito açúcar. Mas essa só podia ser duas vezes por ano, acho eu, pela passagem de classe e no meu aniversário. Com os ovos, lá em casa, todo o cuidado era pouco. Estavam contados, eram para deitar. E ao açúcar para a broa a minha mãe fechava os olhos. Fazia de conta que não sabia...

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Junho de 2012, sob o título "Eu era mais broa com açúcar amarelo". Mas hoje, palavra de honra, marchava uma gemada...

O ungido (ou Ele há gajos com sorte)

O seu aniversário calhava todos os anos no mesmo mês e no mesmo dia. Ele achava que era bom augúrio.

La novia

Foto Hernâni Von Doellinger

Para cãezinhos incontinentes

Foto Hernâni Von Doellinger

Vinte e três dias depois das eleições autárquicas, os partidos políticos e movimentos cívicos - cívicos, é preciso que se note! - começam finalmente a limpar a estrumeira que fizeram durante a campanha eleitoral. Só o PAN - e logo o PAN! - é que não mexe uma palha. Os restos do PAN continuam a rir-se um bocadinho de nós, de braços cruzados, nos mesmos sítios onde foram estrategicamente arriados. Mas só pode ser de propósito. Um destes dias vão fazer-lhes talvez uma portinha e fica ali um WC bem catita e recatado para cãezinhos incontinentes. É. O PAN não dá ponto sem nó.

A última viagem do surfista previdente

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 16 de outubro de 2021

A caridade tem dias

Antigamente a caridade tinha dia certo, e era um descanso. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e eram assim para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou na Câmara Municipal, nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.

(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações.)

Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses mais ricos seriam os nossos ricos e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.

Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos que ainda por cima tinham as mãos sujas.

(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)

Graças a Deus, isto era só antigamente.

P.S. - Hoje, 17 de Outubro, é Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza e Dia Internacional dos Sem-Abrigo. Um Dia em cheio para as almas caridosas.

Uma casa portuguesa, com certeza

Foto Hernâni Von Doellinger

Comer com os olhos

Eram dois homens, já na segunda metade da idade. Um deles fica à porta, enquanto o outro entra no restaurante. O proprietário, que o recebe no hall, pergunta-lhe "É para almoçar?" e o homem responde "É para dar uma vista de olhos". O dono do estabelecimento, embora lhe apeteça, não disparata: "Faça favor. Isto não é nenhum museu, portanto não paga para ver".
Um ou dois minutos depois, o homem sai. Olha para o amigo que o espera, não falam, e desandam dali no mesmo passo descomprometido com que tinham chegado. Deixo de os ver. Fico a imaginar que vão a outro restaurante, fazem a mesma cena mas trocam de papéis. Assim, à vez, vão comendo com os olhos e já ficam almoçados. Melhor do que ir mastigar o papo seco de nariz amarrotado contra a montra do talho, como vi uma vez em Fafe.
Nos corredores do Orçamento se calhar não sabem: comer com a boca está a sair dos hábitos de cada vez mais portugueses.  

A pé, ó vítimas da fome!

- A pé, ó vítimas da fome! - gritou o speaker-cantor. O pavilhão estava cheio mas ninguém se levantou. Era uma fraqueza muito grande...

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Pãozinho do Senhor, ensinava a Bó de Basto

Vi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia, vi que na Turquia, esse lamentável lapso da União Europeia, há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas assim me foi contado há anos, e eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas influências foram tão longe que chegaram à bucólica freguesia de Passos, Cabeceiras de Basto, propriamente à casa da minha querida avó materna. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os moços ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. (E já lá iremos, ao monte.)
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.
(O meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...)
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

Agora vou contar o seguinte: fui muitas vezes à merda. E gostava. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para calafetar o forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e às vezes ir à fonte buscar água, coisa de menina, só para se rirem de mim.
(Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali acabava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe. Dali já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.)
A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquele tempo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se a acompanhar umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois deslubrificados. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".

Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?...

P.S. - Hoje, 16 de Outubro, é Dia Mundial do Pão, Dia Mundial da Alimentação e, já agora, Dia Mundial da Coluna, que não vem ao caso. Resolvi que seja também Dia Mundial da Minha Bó de Basto.

O Chiado sabe-me a açorda, dizia o Campos

Foto Hernâni Von Doellinger

Agustina, a jornalista

Agustina Bessa-Luís ocupou o cargo de directora de O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987. Digo bem: ocupou o cargo. Fazendo o favor a Diogo Freitas do Amaral, a quem o jornal da portuense Rua de Santa Catarina tinha sido dado pela família Pinto de Azevedo. Agustina entrou e mandou logo mudar de sítio a secretária do gabinete da direcção, para poder apanhar solzinho nas perninhas. É a grande marca do seu consulado. De resto, era bonito de se ver aquela mulherzinha de carrapito e xaile ou lenço pelas costas, sentada quase invisível, debruçada sobre o mesão, com os pés a meio caminho do soalho, manuscrevendo laboriosamente numa letrinha encarreirada que era preciso saber.
Agustina escrevia para o jornal uns "editoriais" extraordinários, que eram tudo menos editoriais. Eram pérolas literárias, histórias, contos, ensaios, que viam a luz do dia no cantinho superior esquerdo, ou talvez direito, da primeira página.
A directora não sabia nada do jornal e o jornal também não queria saber dela. Um dia o chefe de redacção entrou-lhe no gabinete perguntando-lhe o que fazer com uma notícia eventualmente mais melindrosa e que agitava na mão. É, antigamente as notícias viajavam em folhas de papel. "Eu não sei nada disso", enxotou a directora, "vá falar com o chefe de redacção". E o chefe de redacção disse "Com certeza, senhora directora", e foi falar consigo mesmo, modalidade, aliás, em que era e ainda é campeão.
Agustina deixou O Primeiro de Janeiro depois dos pascácios da administração lhe terem feito a sacanagem de publicar, sem lhe dar cavaco, uma edição apócrifa do jornal, a pedido das bolachas Triunfo. A escritora exigiu a demissão dos administradores, que se mantiveram nos seus lugares, agarrados ao tacho como lapas. Saiu ela.
Sei disto tudo e outro tanto porque conheço muito bem o tipo que revia os "editoriais" de Agustina no velho Janeiro e que, vítima do efeito dominó provocado pela renúncia da directora, acabaria por ter de tomar conta da redacção. Conheço-o tão bem que é como se me visse ao espelho. 

P.S. - Agustina Bessa-Luís faria hoje 99 anos.

Terra mãe, mães da terra

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Cabeças brilhantes

Abriu um cabeleireiro para carecas. Lavava, encerava e puxava o lustro.

Penteando macacos

Mandaram-no pentear macacos e ele foi. Começou por baixo, evidentemente, mas já é cabeleireiro-chefe em Gibraltar.

Profissão de risco

Ele queria uma profissão de risco. Tinha apenas um dúvida: cabeleireiro ao alfaiate?... 

P.S. - Hoje, 14 de Outubro, é Dia Mundial do Careca.

Orgulhosamente ao léu

Foto Hernâni Von Doellinger

Um bocado palerma

Os óculos são como as luvas, as calças, as meias, as botas, os patins, as jarras, os estalos, os cornos e outras coisas boas da vida - vêm aos pares. Ocorreu-me este acutilante pensamento porque precisei de mudar de óculos. E então: "Estes óculos fazem-me um bocado palerma", disse eu à menina da loja, mirando-me no espelho. "Não diga um coisa dessas, por acaso até lhe ficam muito bem", disse-me a menina da loja. "Exactamente, é isso que eu quero dizer: estes óculos favorecem-me. Normalmente sou palerma completo", esclareci.

Para cima de sargento

Posso fazer uma pergunta? Pronto, já fiz. E agora outra: os óculos graduados são todos para cima de sargento?...

A perder de vista

Foto Hernâni Von Doellinger

Grande olho!

"Aqui não há qual-quer-ti-po-de-dú-vi-da", garantiu de imediato o locutor da televisão. Sou desconfiado quanto às certezas. Portanto resolvi accionar a minha lista de verificação de tipos de dúvidas, ou, como dizemos nós, os especialistas em língua portuguesa e apugilistas do acordo ortográfico, a ultimate checklist.
E então:
- Dúvida metódica? - Não.
- Dúvida caótica? - Não.
- Dúvida cartesiana? - Não.
- Dúvida sebastiânica? - Não.
- Dúvida hiperbólica? - Não.
- Dúvida hiperbárica? - Não.
- Dúvida sensível? - Não.
- Dúvida cruel? - Não.
- Dúvida do sonho? - Não.
- Dúvida do pesadelo? - Não.
- Dúvida metafísica? - Não.
- Dúvida metaquímica? - Não.
- Dúvida razoável? - Não.
- Dúvida insensata? - Não. 
- Sombra de dúvida? - Não.
- Sol de dúvida? - Não.
- Sol na eira e chuva no nabal... da dúvida? - Não.
- Na dúvida pró réu? - Não.
- E pluribus unum? - Não.
- In vino veritas? - Não.
- Branco ou tinto? - Não. 
Pronto. Tinha razão o locutor da televisão. Grande olho! Excelente visão! Não havia ali realmente "qual-quer-ti-po-de-dú-vi-da", dúvida de feitio nenhum: após as repetições, era fora-de-jogo como uma casa...

Óculos à carga

É desagradável. Pousar os óculos e depois não saber onde. E precisar deles para os procurar. E pegar no telemóvel para lhes ligar, obrigando-os a darem sinal de si. E então lembrar-me de que nunca pus os óculos a carregar.

Vendo pontos de vista para o mar

Eu tenho uma certa maneira de ver as coisas, isso é verdade. Mas não possuo aquilo a que se possa chamar um prisma, uma óptica, sequer um ângulo que se diga. Tivesse-os eu, e vendia-os...

Ponto de vista

Aventureiro por natureza, o ponto de vista só tinha um medo - as cataratas. 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Ilusão de óptica

Era uma ilusão de óptica. Até parecia, mas vista de perto não vendia óculos e similares. Era apenas uma loja de fazendas...

O bom racista

A olho nu não se percebe, mas ao microscópio (isto é, vestindo o olho) chega-se lá: o racismo divide-se em duas partes e há uma nanométrica diferença entre o racista bom e o racista mau. O bom racista começa as frases dizendo - Eu não sou racista mas. 

Visão divina

Deus vê tudo. Mas fecha os olhos.

P.S. - Hoje, 14 de Outubro, é Dia Mundial da Visão.

Óculos, evidentemente óculos

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Época de incêndios, como manda a lei

Pois lá tivemos a nossa "Época de incêndios", e atenção que não fui eu quem lhe pôs o nome e a agendou para esta altura do ano - foi o Governo, foi Portugal! Portanto lá tivemos a nossa "Época de incêndios", legítima, de papel passado, dentro do prazo, e queriam o quê? Inundações?...

P.S. - Hoje, 13 de Outubro, é Dia Internacional para a Redução de Catástrofes.

Foge comigo, Maria

Foto Hernâni Von Doellinger

Ninguém diga que está bem

O médico tinha aquele tique de conversa. "Ninguém diga que está bem!...", atirava, a torto e a direito. Resultado: o hospital rebentava pelas costuras.

Na minha rua passa o mar 112

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A inconveniência diplomática do chulé

Era um encontro previsto para ser diplomático e discutido em três sets: quando Mister Cheddar, pela Inglaterra, e Monsieur Camembert, pela França, reuniram em Sherwood, sob os auspícios do Robin dos Bosques e a bênção de Frei Tuck, tendo sobre a mesa, já naquele tempo, a delicada questão das quotas leiteiras. Estava tudo a correr bem, entre uísques e champanhes bem bebidos, mas era um cheiro a chulé que não se podia. Foi então que o inglês, já com um grãozinho na asa e uma mola de roupa no nariz, não aguentou mais e questionou o francês, com a ajuda do Carlos Fino, que fazia as traduções: - Porque é que o caro amigo (old chap, no original) não vai mas é lavar os pés no Sena?
E foi assim que começou a Guerra dos Cem Anos. Até hoje.

A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos. 

É fartar, vilanagem!

Quando a corneta, ou olifante, tocou para o tacho, eram mais de quatro mil cavaleiros, de faca e garfo em punho como se fossem para uma justa, mas sentados e com um apetite escancarado e lavajão, posto que estávamos na Idade Média, e higiene e boas maneiras não eram com eles naquele tempo. Manifestamente atónito e arreliado assim assim, o rei Artur fez contas à vida, pelos dedos, apaziguou a algazarra da turba colorida e apenachada com meia dúzia de flechas cirurgicamente colocadas e obviamente fatais, invocou o regimento e colocou um ponto de ordem à mesa. O seguinte: "Embora nunca tenhamos realmente existido, está historicamente provado que vocês não podem ser mais de doze, talvez 24, ou, para não me chamarem unhas de fome, temos sala para 150, fora as crianças, que pagam metade. Agora, 4.145 adultos e gordos, menos os seis que eu vindimei, já é uma escandalosa moinice. De onde é que me apareceu esta gente toda, que ainda por cima não traz o Magriço, que até nem dá despesa nenhuma, como o próprio nome indica? Por São Jorge, isto é a Távola Redonda, não é o BPP"...

P.S. - O escritor britânico Roger Lancelyn Gren, autor de "Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda" e "Robin dos Bosques", morreu em Outubro de 1987, aos 68 anos.

Só destes, tenho sete 155

Foto Hernâni Von Doellinger

O entendido

"Quem semeia ventos, colhe tempestades", dizia o engenheiro agrónomo. Ele sabia do que falava.

P.S. - Hoje, 12 de Outubro, é Dia Do Engenheiro Agrónomo. No Brasil. Portanto, Agrônomo...

Faltou àjaulas...

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 10 de outubro de 2021

Tanta pomba assassinada

A mãe aproveitou o bocanho da manhã desta segunda-feira de tempo farrusco e incerto para descer até ao passeio da praia com a filhinha pela mão. Apontou o areal e disse naquela maneira pateta de falar às criancinhas
- Ei!, tantas pombinhas, tantas pombinhas! Eeeiii! Ó pombinhas, ó pombinhas!...
A menina, pouco convencida porém obediente, correspondeu com um económico e timorato
- Ei.
Tinha razão a pequena. Já suficientemente grande para saber a verdade das coisas: eram gaivotas.  

P.S. - Hoje, 11 de Outubro, é Dia Internacional da Rapariga. Ou da Menina, no Brasil.

No meio da ponte

Foto Hernâni Von Doellinger

O complexo

Era evidentemente um complexo, com todos os seus sintomas. Estádio, pavilhão, piscina e quatro campos de ténis. Em Psiquiatria costumamos chamar-lhe complexo desportivo. 

P.S. - Hoje, 10 de Outubro, é Dia Mundial da Saúde Mental.

sábado, 9 de outubro de 2021

Contos americanos

- Era um exímio executante...
- Tocava o quê?
- Cadeira eléctrica.  

P.S. - Hoje, 10 de Outubro, é Dia Mundial Contra a Pena de Morte.

A minha mãe ouviu um too

Liguei esta manhã à minha mãe, para receber a indispensável bênção semanal, e a minha mãe disse-me que em Fafe estava um frio de rachar, daquele frio que parece que "já passou por muita neve", portanto fora de prazo, e que por volta das seis, sete horas ouviu um too. A minha mãe ficou muito admirada por ser só um. Ainda admitiu, a rir-se com os botões, que fosse uma bomba, mas não, o que ouviu foi mesmo um too, tinha a certeza.
É este falar antigo, escorreito, musical, tão galego nosso, que me apaixona tanto, e suspeito e lamento que sejam já poucos os que o guardam em Fafe. Atenção: a minha mãe falou bem. A minha mãe fala sempre bem. Toar é sinónimo de trovejar e portanto um trovão é um too. Lê-se e diz-se tôo e não tu, à estrangeira. A minha mãe ouviu um too e deram-me umas saudades desgraçadas. Porque é tão bom ouvir...
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Abril de 2019. E agora a sério (à séria, se inesperadamente lido em Lisboa): hoje, 10 de Outubro, é Dia Mundial do Audiologista. No Brasil, que desde 1990 é, não para mim, a matriz da língua que era nossa, dizem que é Dia Mundial do Fonoaudiólogo, e eu estimo-lhes as melhoras, aos brasileiros de nascença e aos portugueses correlativos. Saravá!

Também faço isto muito bem 559

Foto Hernâni Von Doellinger

Que nós bem, graças a Deus

A Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.

Espero que ao receberes esta

Foto Hernâni Von Doellinger

Adeus, até ao meu regresso

Fernando Pessoa inventou e patenteou o aerograma. Exactamente esse Fernando Pessoa, o da "Mensagem" e dos heterónimos - se não sabiam, ficam a saber. O aerograma era uma carta sem envelope e andava de avião. Escrevo era e andava porque não sei se ainda há aerogramas. Se há, são fáceis de reconhecer: os aerogramas são cartas levezinhas e contorcionistas que se dobram e fecham sobre si mesmas. É procurar nos circos.
O aerograma foi um enorme sucesso durante a Guerra Colonial. Era o meio de comunicação preferido entre as famílias cá na então chamada metrópole e os militares enviados lá para o então chamado Ultramar, para o campo de batalha do regime. O aerograma matava saudades entre Portugal e África. Mas também inventava amores, alimentava namoros, alcovitava casamentos. Contava histórias.
Em Fafe, os aerogramas eram vendidos no palacete do Grémio da Lavoura. Entrava-se pela porta das traseiras, e está certo, porque a guerra era uma vergonha. Eu ia comprar aerogramas para a Mila Tripa, que se tornara madrinha de guerra do soldado Valentim que eu não conhecia. Nem ela. A Mila trabalhava na Fábrica Alvorada e era como se morasse connosco, era da família a bem dizer, uma espécie de tia e irmã mais velha, mulher extraordinária que o tempo me obrigou a admirar e respeitar cada vez mais.
Os aerogramas eram oficialmente grátis e já não me lembro quanto é que custavam. Que se segue? Aerograma para lá, aerograma para cá, fotografia para cá, fotografia para lá, e poupando nos pormenores, a Mila e o Valentim passaram naturalmente a namorados e noivaram por correspondência. O soldado Valentim deixou as pernas na guerra, mas voltou homem inteiro e bom. Ele e a Mila casaram. E foi um final feliz.

Noutros casos, não. Às vezes os aerogramas não vinham. Chegava um telegrama e a seguir um caixão. Vi disso em Fafe naqueles anos cinzentos. Apesar da meninice, vivi-o e senti-o profundamente. Vezes demais. Trinta e sete militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar. O funeral do Zeca Lopes - que era dos nossos, da nossa rua - marcou-me para toda a vida. Creio que há coisa de trinta anos escrevi para a rádio nacional uma crónica a pretexto deste episódio que me persegue, mas não sei dela. E assim não me resolvo.

Entre o binómio e o perónio

Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.

A toda a parte chegam os vampiros

Metido sorrateiramente na caixa de correio da porta de casa, um prospectozinho 21x10 em couchê fatela escrito dum lado só. Pergunta, em letras garrafais, vermelhas, "Precisa de dinheiro?" e, ainda enorme mas a preto, "Tem imóvel?"... E passa a explicar, em caracteres mais recatados: "Mesmo com penhoras, dívidas fiscais ou problemas bancários, temos a solução! Contacte-nos. Resolvemos em 48 horas. Análise gratuita". Seguem-se dois números de telemóvel, e mais nada, nem um nome, uma morada, uma marca, pois, como diz o Evangelho, "Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita, a fim de que a tua esmola fique em segredo" (Mateus 6:3-4). Ainda há gente boa, graças a Deus...

P.S. - Para ouvir, Zeca Afonso, sempre.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A morte chega pela caixa de correio


Um folheto que me foi metido na caixa do correio convida-me a escolher "um Plano Funerário adequado". Adequado a quê e para quem?, se conto estar morto quando for o meu funeral e quero lá saber de mordomias póstumas. Diz que há um "Plano Magno", praticamente como o gelado, um "Plano Essencial", que não faz bem nem mal, e um "Plano Popular", como o partido do Chicão e de mais quinze. Em qualquer dos casos, são garantidos "serviço personalizado a partir de 995 euros" e uma vasta "experiência", o que também deixa muito mais descansado o defunto mais exigente.
A caixa do correio mete-me medo. Não tanto pelas contas da luz, da água ou do condomínio (embora, rústico que continuo a ser, pagar condomínio ainda me faça uma certa confusão), mas mais pelos avisos das Finanças e do Tribunal. Ainda por cima é uma galdéria, a minha caixa do correio, escarrapacha-se a todos, até aos da pior espécie: aos que perguntam pelo meu ouro e eu não os conheço de lado nenhum, aos que me pedem o meu voto e não me conhecem de lado nenhum, aos que querem comprar a minha casa que eu não quero vender, aos que me querem vender uma casa que eu não quero comprar, aos que querem querem querem que eu troque de Deus, e agora até aos que me querem vender a minha morte como se soubessem alguma coisa da minha vida que eu não sei.
Vamos lá com calma. Eu sei que ninguém fica cá para a semente e que se alguém ficar sou eu (mas não é isto que interessa). Sei que certamente já por cá andei mais tempo do que ainda vou andar. Mas, com franqueza, a vida é tão boa e dá-me tantas consumições que tenho mais que fazer do que pensar na morte, do que organizar a minha morte. Quando eu morrer (se morrer), logo se verá. Eu é que já não. Essa é a herança que deixo de bom grado a quem me sobreviver. Se alguém houver.
Por outro lado: a ofensiva cangalheira aguçou a minha curiosidade. Esse é o truque do marketing, mesmo do marketing de trazer por casa. Porta a porta. Admito que estou a pensar pedir um orçamento para a minha morte. Seduziu-me aquela coisa da "Medalha Impressão Digital", que não sei o que é mas deve ser muito bom para o morto. E também quero que me expliquem muito bem explicadinho o "Contrato de Funeral em Vida". Isso é legal? Funeral em vida?

O explicador de baixo custo

Sob a eloquente divisa "A alegria e o prazer de aprender", o panfleto introduzido na minha caixa do correio promete apoio ao estudo "em ambiente acolhedor e familiar", para os 1.º, 2.º e 3.º ciclos. Promete também "Preços Low Cost". Vê-se logo que o douto explicador estima particularmente a língua portuguesa.  

Do preço do brushing ao Império dos Sentidos

Disseram-me que me faziam um brushing por quatro euros e meio. O panfleto metido na caixa do correio sugere que se trata de uma promoção para o "Mês do Amor", e eu acho que compreendo, embora seja um gajo antigo, do tempo em que nem havia Dia dos Namorados. Quatro euros e meio são novecentos escudos: sinceramente não sei se isto é uma pechincha ou marketing enganador, estou por fora do mercado, não ando por aí a apreçar o brushing, e ainda não decidi se gosto que mo façam em salding, mas percebo a ideia.
Ao contrário do que os falsos moralistas defendem, o brushing é uma coisa como outra qualquer. Faz parte. Por exemplo: muitas mulheres gostam e têm muita pena de não fazerem brushing por causa do atraso de vida dos seus maridos, que só admitem o brushing na cabeça das outras e gabam-se. São fariseus de carregar pela boca.
O panfleto oferece também "Nuances", por quinze euros e meio, "Extensões" por trinta euros e meio, e "Alisamento (tudo incluído)", por trinta e cinco euros e meio. Colocada assim a questão, não digo que não vá lá, embora precise de pedir um empréstimo ao banco. Trinta e cinco euros e meio são sete contos e quinhentos, mas, valha-me Deus, é "alisamento" e com "tudo incluído".
Oito euros e meio custa o "brushing+corte". Preços comparados, até parece barato, mas nesse é que não me apanham - vi uma vez num filme, chamava-se "O Império dos Sentidos". Dasse!... 

P.S. - Esclareço os potenciais interessados que os preços acima reportam a Fevereiro de 2014. Actualmente, segundo acabo de ser informado novamente pela caixa do correio, "brushing+corte+creme" andará à volta dos quinze euros. Em promoção, é preciso que se note, e não sei se o creme pode ser substituído por manteiga...

Elogio da cobardia

Mais vale sê-lo que estampilha. 

A parábola da caixa de correio

Foi uma quarta-feira quase corriqueira na minha caixa de correio. Na caixa de correio mesmo: naquela que já existia antes dos computadores e da internet terem sido inventados. Deixaram-me o desdobrável da Media Markt com um Stallone de papelone que é a cara chapada do Gene Simmons, um convite para a Feira do Mundo Rural, na Quinta da Bonjóia, as "7 vantagens" do "cartão de saúde" de uma rede nacional de lojas de óculos, com "especialidades médicas para toda a família", e o folheto como-quem-não-quer-a-coisa de uns desses novos compradores de "ouro, prata, jóias, novo, usado, em mau estado" que tomaram de assalto as nossas ruas e gavetas. Lixo.
O extraordinário é que alguém também lá meteu um exemplar da Voz da Verdade, publicação que até ontem me tinha passado completamente ao lado. E nem admira. Tanto quanto percebi, a Voz da Verdade é a voz do patriarcado de Lisboa e eu moro em Matosinhos. Matosinhos Sul, confesso, mas não creio que seja sul bastante para que já nos tivéssemos encontrado. Mais extraordinário ainda é que as notícias e o jornal têm a data de "domingo-20 de Novembro-2005".
Não sei que mensagem me estão a querer enviar. Nem quem. Nem porquê. Mas se é por causa de eu pensar e ter escrito que a Igreja (a Hierarquia, mais precisamente) anda muito devagar em relação ao Mundo e à História, esclareço já que não era a isto que me estava a referir. Não era às notícias. Embora esta história dos seis anos e meio de atraso até pudesse ser o princípio de uma excelente parábola para explicar o resto.

P.S. - Publicado originalmente no dia 31 de Maio de 2012. Hoje, 9 de Outubro, é Dia Mundial dos Correios. E o correio hoje em dia é isto: panfletos, publicidade, propaganda, encomendas, encomendas não encomendadas, assédio comercial, proselitismo político e religioso, vigarice...  

Havia jornais, ardinas e correios...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O mistério dos ovos de coelha

As coelhas, como se sabe, são malucas por truca-truca. Passam a vida naquilo. E no entanto só põem ovos por alturas da Páscoa. É um mistério...

Ovos de galo

A ciência ainda não encontrou uma resposta. Porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha?

O ovo de Colombo

Quando Colombo pôs o ovo, foi o assombro geral. O respeitável público ainda esperou que lhe saísse também um coelho da cartola ou, vá lá, um par de pombas brancas esvoaçando do lenço de falsa seda multicor. Mas nada. O ovo era número único e foi assim que ficou na História.

P.S. - Hoje, segunda sexta-feira de Outubro, é Dia Mundial do Ovo.

Na minha rua passa o mar 111

Foto Hernâni Von Doellinger

Mal comparando

O polvo é um octópode. Dois linces da Malcata também.

P.S. - Hoje, 8 de Outubro, é Dia Mundial do Polvo.

Para princípio de conversa...

Foto Hernâni Von Doellinger

Sempre a dar-lhe

Esteve de baixa em Janeiro e Fevereiro, pelo seguro em Março e Abril, de quarentena em Maio, dispensado sem perda de salário em Junho, sob lay-off em Julho, chegou a Agosto e meteu férias.

O Oliveira

O Oliveira foi chamado de urgência à gerência. Ordens: mudança de secção e de funções. Quer-se dizer: mobilidade. Deram-lhe um martelo. - Um martelo!? - protestou -, mas toda a gente sabe que eu sou o Oliveira da serra...

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Mais valia

Era o Mais-valia da empresa. Chamavam pelo Mais-valia e o Mais-valia vinha. E ia. E ia e vinha. E vinha e ia. E tornava a ir e tornava a vir. Chamavam-no a toda a hora e momento, por tudo e por nada, era Mais-valia para aqui, Mais-valia para ali, e ele, que acreditava no poder dos hífens, andava vaidoso e feliz. O trabalho do Mais-valia era ir e vir, vir e ir, o que lhe ocupava sobremaneira o dia. Sentia-se tão necessário! Não sabia que a alcunha lhe ficara porque toda a gente dizia que mais valia despedi-lo.

Profissional

- Então o que é que faz?
- Desempregado.
- E o que é que fazia?
- Nada.

Barato

Barato, barato é trabalhar em Portugal. 

Fundo do desemprego

Viu um anúncio a pedir idiotas e lá foi ele. Estava no fundo do desemprego e respondia a todos os anúncios.

P.S. - Hoje, 7 de Outubro, é Dia Mundial do Trabalho Digno. 

Com todas as mordomias

Foto Hernâni Von Doellinger