A Mocidade Portuguesa era uma organização juvenil do Estado Novo e, em
certo sentido-descansar-à vontade, complementava ou concorria na paz do
Senhor com os escuteiros de que a Igreja Católica resolvera tomar
conta, pelo sim e pelo não. Para os devidos efeitos, e a bem da Nação, a
Mocidade Portuguesa era fascista, embora a rapaziada não fizesse
ideia, e os escuteiros eram, nas desbragadas palavras do humorista
brasileiro Juca Chaves, "um bando de garotos vestidos de idiotas,
comandados por um idiota vestido de garoto". Consta que Juca Chaves teve
de pedir desculpas pelo abuso. A Igreja, não.
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século
passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão
fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não
esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha
evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional,
grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos,
salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide,
simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a
Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas,
associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e
Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona
Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos,
o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital,
outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não
me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na
antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de
Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela
Liberdade. Foram levados, torturados e assassinados pela Pide.
O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa
deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio.
Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos
os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos
nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por
favor, nem que seja mentira.
A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha
bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou
estandartes, tinha fardas catitas, toques de clarim e toque de caixa,
cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação
nazi-fascista e hino privativo, Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim.
Tinha também umas mochilas de lona verde-acastanhada muito jeitosas e
tinha tendas, pás, picaretas, cantis e acampamentos, e eu invejava o
mundo de aventuras daquela moçarada. E tinha a Chama, assim com
capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e à volta de uma fogueira com
as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que
perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho,
ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Uma vez houve uma
Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje
esmagado pelo anfiteatro da Biblioteca Municipal de Fafe, o que
demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra
Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola,
actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura
ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás, de passo
certo, levado, levado sim...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde
ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores
de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época,
gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas
caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho
havia uma nora desactivada, mais à frente uma mina já com motor, creio
que do Sr. Mijão, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a
geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para
fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro
e corresse a esticar-me o orelhame.
Queria também confessar o que se segue, porque esta memória não me
larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a
Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho,
esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das
traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas
emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que
jeito. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é muito
bem feito.
A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que
se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas, as
cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar
assisti a uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer
coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias
tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei
triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês.
(Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos
cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto
que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifício" ou somente
"Servir". Ou Sabrina. Pois. E as SS eram a Segurança Social do Terceiro
Reich, Hitler chamava-se assim para não se confundir com Hernâni e o Z
não é de Zorro mas de Zeferino. A mim faz-me uma certa diferença: o
Zorro sou eu, desde os livrinhos do Marreca, e Zeferino realmente não me
dá jeito nenhum.)
P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Setembro de 2017.
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