quinta-feira, 30 de abril de 2020

Quando o telefone toca

O telefone toca, a gente atende num susto, e o que é que faz? A gente, quero dizer nós todos, os portugueses de um modo geral. Posto isto - então o que é que a gente faz? A gente agarra-se ao telefone com as duas mãos numa aflição que Deus me livre, e pergunta para o outro lado, aos gritos e falta de ar: - Estou?! Estou??!! Estou???!!! A gente tem medo de não estar. Precisamos de confirmação. Ó insegurança! Ó angústia existencial! Ó compinchas caguinchas! Que é das armas e dos barões assinalados? Que é dos heróis do mar, nobre pobre, nação valente?
E nisto estamos. Ou não estaremos?

Colinho

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando o 1.º de Maio era no dia 28

Antigamente o 1.º Maio era no dia 28 do mesmo. Quando digo antigamente quero dizer antes do 25 de Abril de 1974, que já é antigamente que chegue - que o confirmem os deputados da nação, cujos mais de um terço ainda não tinham nascido quando a coisa se deu. Um por exemplo: o estádio do SC Braga na Ponte, antes da extraordinária Pedreira do arquitecto Souto Moura, chamava-se Estádio 28 de Maio. Por questões políticas e não de calendário litúrgico, rito bracarense: chamava-se 28 de Maio glorificando o golpe militar que naquela data, em 1926, derrubou a Primeira República e abriu caminho à ditadura do Estado Novo. De corte fascista, o Estádio 28 de Maio, que ainda está de pé, tentava aparentar-se e rivalizar com o Estádio Nacional, no Jamor, ou em Oeiras, consoante a dor de cotovelo de cada qual, e foi inaugurado, em 1950, por Salazar e Carmona, que assim dito até parecem uma alegre sociedade de costureiros. Veio a revolução dos cravos e o estádio mudou de nome, passou a chamar-se Estádio 1.º de Maio, viva o Dia dos Trabalhadores, viva a classe operária!, mais ajuizado seria que se tivesse chamado sempre Campo da Quinta da Mitra.
Em todo o caso, como já escrevi aqui, mudar o nome do velho estádio de Braga, de 28 de Maio para 1.º de Maio, só demonstra (num raciocínio assumidamente palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se sobretudo e quase só para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário.
Querem outro por exemplo? O Estádio 25 de Abril, de Penafiel. Antes da "política", aquele terreiro chamava-se Campo das Leiras. Que mal é que tinha o nome?

O 28 de Maio de 1926 foi praticamente como o 25 de Abril de 1974, mas em versão fascista. Começou em Braga e chegou a Lisboa atrás do cavalo branco de Gomes da Costa, uma espécie de chaimite daquele tempo. 
Antes do 25 de Abril, os 28 de Maio eram celebrados com desfiles, por assim dizer, militares: Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, certamente bombeiros e escuteiros, provavelmente ranchos folclóricos e evidentemente soldados propriamente ditos. A Veneranda Figura lá estava, mas o de Santa Comba se calhar não, porque constipava muito de saísse à rua e o povo fazia-lhe espécie. Havia discursos, condecorações e sobretudo muitas fanfarras, a bem da Nação. O bom povo português assistia a tudo patrioticamente embebecido, se não me engano com aguardente, porque as cerimónias eram de manhã.
Uma vez eu também lá fui. Estava no seminário, em Braga, e os padres levaram-nos. Fomos portanto levados. Gostei muito, porque o meu tio Zé de Basto era corneteiro na fanfarra do Regimento de Infantaria 8 e eu já não o via há uma temporada. Pusemos a conversa em dia.
Resumindo e concluindo: Portugal continua a ser o mesmo, só o tio Zé é que já não anda na tropa...

Elas

Foto Hernâni Von Doellinger

Era o Lopes

Eu levo os telemóveis muito a sério (à séria, se lido em Lisboa). Se o meu telemóvel toca, e é raro, eu atendo. Sempre. Ainda ontem: eu estava aqui nas traseiras, por acaso sem o telemóvel à mão, e ouvi-o tocar na cozinha, virada para a rua. Fui lá a correr: não era o telemóvel, era a máquina de lavar roupa, que as máquinas de lavar roupa agora também tocam. O que é que eu fiz? Atendi a máquina de lavar roupa, evidentemente, e era o Lopes...

Com uma facada, era tiro e queda

Foto Hernâni Von Doellinger

Sou dos filmes de cobóis desde pequenino e particular consumidor dos spaghetti de Sergio Leone com molho de Ennio Morricone. Tenho-os na despensa, a colecção completa e indispensável. Gosto. Gosto e assobio. Vejo-os sempre que me apetece, e se dão na televisão (como dão de vez em quando na RTP 2, cada vez menos, ou agora nestes canais que nos saem do bolso, como por exemplo no Fox Movies ainda aqui atrasado), não mando ninguém ver por mim. Vejo. Vejo e assobio. Porém, ao fim destes anos todos e após milhões de sessões, devo confessar o seguinte: continuo sem perceber a morte dos bandidos. Há ali qualquer coisa que não bate certo. Quer-se dizer - os bandidos é como tordos, morrem uns atrás dos outros até chegar ao chefe, e assim é que está bem, mas já repararam à custa e ao fim de quantos balázios? Já contaram quantas balas são precisas para matar um bandido, um só, nem que seja um simples soldado raso, figurante praticamente? Mais de dezasseis e todas na muche, até que o estafermo do bandido, um só, aceite esticar de vez o pernil, deixando o filme avançar. É muita despesa e má propaganda à inquestionável pontaria, por exemplo, de um atirador da marca de Clint Eastwood. Em contrapartida, quando a coisa é resolvida à facada, o mau da fita morre logo à primeira. Tiro e queda, já viram?
Acho mal. E no entanto assobio. Ennio Morricone é que sabe...

P.S. - Publicado originalmente no dia 23 de Março de 2013. Sergio Leone morreu no dia 30 de Abril de 1989, aos sessenta anos. Fiquei a saber hoje que, na escola primária, Leone foi companheiro de Ennio Morricone, e daí decerto é que vem a rima. Quanto a Morricone, anda a despedir-se, aos 91 anos, depois de dar música a mais de 500 filmes e programas de televisão. Não digo adeus Morricone, digo viva Morricone, porque Morricone não vai, Morricone fica. No ouvido. No meu cinema paraíso. E eu assobio...

Interlúdio fotográfico 246

Foto Tarrenego!

O Homem de Gelo

O calcanhar-de-aquiles do Homem de Gelo era o Verão. Assim um bocado como o Ferrero Rocher...

O novo normal

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 29 de abril de 2020

O ovo de Colombo

Quando Colombo pôs o ovo, foi o assombro geral. O respeitável público ainda esperou que lhe saísse também um coelho da cartola ou, vá lá, um par de pombas brancas do lenço de falsa seda multicor. Mas nada. O ovo era número único e foi assim que ficou na História.

P.S. - Cristóvão Colombo recebeu a carteira profissional de explorador, passada pelas autoridades espanholas, no dia 30 de Abril de 1492. Anos mais tarde construiu um centro comercial e duas torres de escritórios na zona de Benfica, em Lisboa, Portugal.

Deixem passar o mar!

Foto Hernâni Von Doellinger

Alda do Espírito Santo 4

Para lá da praia

Baía morena da nossa terra
vem beijar os pezinhos agrestes
das nossas praias sedentas,
e canta, baía minha
os ventres inchados
da minha infância,
sonhos meus, ardentes
da minha gente pequena
lançada na areia
da praia morena
gemendo na areia
da Praia Gamboa.


Canta, criança minha
teu sonho gritante
na areia distante
da praia morena.


Teu teto de andala
à berma da praia
teu ninho deserto
em dias de feira,
mamã tua, menino
na luta da vida.


Gamã pixi à cabeça
na faina do dia
maninho pequeno, no dorso ambulante
e tu, sonho meu, na areia morena
camisa rasgada,
no lote da vida,
na longa espera, duma perna inchada


Mamã caminhando pra venda do peixe
e tu, na canoa das águas marinhas
- Ai peixe à tardinha
na minha baía
mamã minha serena
na venda do peixe
pela luta da fome
da gente pequena.


Alda do Espírito Santo 

(Alda do Espírito Santo nasceu no dia 30 de Abril de 1926. Morreu em 2010.)

The Way 801

Foto Hernâni Von Doellinger

Amador Montenegro 5

Forte o ruxido
Se escoit'alí,
É que se bican
O Miño e Sil.
De terras váreas
Chegan aqui,
Y-ô s'alcontraren,
Ô se fundir
N-un abrazo, ¡quén sabe as hestóreas
Que quedo se din!

De lonxe veñen
D'o Miño e Sil
As áugas sempre
C-o seu ruxir.
Eu escoiteinas
Mil veces, mil,
E sempr'o mesmo
Penso qu'ouvín,
Unha hestórea moi triste, sin duda,
Moi triste e sin fin!

"Muxenas", Amador Montenegro 

(Amador Montenegro nasceu no dia 30 de Abril de 1864. Morreu em 1932.)

Também faço isto muito bem 379

Foto Hernâni Von Doellinger

Bastante desagradável

- Está bastante desagradável.
- Você também.
- Eu referia-me ao tempo.
- Eu não.

Music was my first love 61

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 28 de abril de 2020

Dor de corno

Foi ao médico e queixou-se de dor de cotovelo. O médico perguntou-lhe sintomas. Ele disse que a mulher tinha um amante. O médico explicou-lhe que não era dor de cotovelo, mas dor de corno. Ele ficou mais descansado.

Interlúdio fotográfico 245

Foto Hernâni Von Doellinger

Francisco Bandeira de Mello 4

Encontro 

Ele disse
- Vera!
e ficou olhando
e ficou sorrindo
e ficou esperando
e ela parou
e ela olhou para ele
e ficou olhando
e umas folhas caíram
e passou um automóvel
silenciosamente
e passou um homem
despreocupadamente
e não passou mais ninguém
e ela veio andando
lentamente
e ele ficou esperando
serenamente
concentrado
lentamente
e ele disse
- Vera!
e ela tocou nas suas mãos
e ele dizia
- Vera! Vera!
como se só isso soubesse dizer
e ela sorria…


E como pássaros leves
de mãos atadas
os dois saíram
silenciosamente
andando andando
pelo parque sem fim.


Francisco Bandeira de Mello 

(Francisco Bandeira de Mello nasceu no dia 29 de Abril de 1936. Morreu em 2011.)

Também faço isto muito bem 378

Foto Hernâni Von Doellinger

João Penha 6

A carne

Carne mimosa, carne cor de rosa
Nada mais sois, oh anjos, na poesia
Dos vates dissolutos de hoje em dia,
Nos romances de amor, hedionda prosa.

A vossa alma gentil, ideal, mimosa,
Nestas idades de descrença ímpia,
Como escondida numa estátua fria,
Sonha e não voa, de voar medrosa!

Anjos, chorai o Amor! Com voz dolente
Dizei-lhe adeus! Bronco recife
Se apruma entre ele e vós, cruel, ingente:

Que por mais que de vinhos o borrife,
Ninguém gosta de ver, continuamente,
Diante de si, fatal, o mesmo bife! 


"Novas Rimas", João Penha

(João Penha nasceu no dia 29 de Abril de 1838. Morreu em 1919.)

Melhores dias Verão 2

Foto Hernâni Von Doellinger

A menina dança?

1.
- A menina dança?
- Não, muito obrigado.
- Não tem nada que agradecer.
- Mas eu faço questão.
- Coimbrã?
- Oliveira do Hospital, mais concretamente.

2.
- A menina dança?
- Não!
- É como eu. Não acha que fomos feitos um para o outro?...

P.S. - Hoje, 29 de Abril, é Dia Mundial da Dança, dito também Dia Internacional da Dança.

António Valença, o craque esquecido

Foto retirada de O JOGO

O Chico Gordo e o Seninho
Na década de 70 do século passado houve em Portugal um notável avançado chamado Chico Gordo. Bernardo Francisco da Silva passou pelo FC Porto, Tirsense, Lourosa, Braga (creio que ainda é o melhor marcador da história dos arsenalistas no campeonato) e Setúbal, tendo brilhado também a grande altura numa famosa equipa do FC Moxico que foi campeã de Angola na época de 1972/73, portanto no tempo ainda da Guerra Colonial, ao lado de outros craques como Varela, Valença (o Fafe) ou Seninho. Exactamente, esse Seninho supersónico que, anos mais tarde, deixou as Antas para se juntar a Pelé, Carlos Alberto, Beckenbauer, Chinaglia ou Neskeens nos galácticos originais, os New York Cosmos, nos EUA.
Mas estão a ver o Chico Gordo, que por acaso até era magro, não estão?

O Zecão e o boxevista
Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet e tão caro quanto excelente, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que aquele. O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos. Era altíssimo, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço e sempre agarrado à caneca de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande...
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gostava de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas vindas ao Porto, ao Royal e ao Derby, para aliviar o tesão a preço combinado, e daquela ocasião em que ele teve de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério - a piada a espremer era mesmo fazer o Zé Cão dizer "boxevista" -, na parte de cima da Ponte de Luís I, exactamente por causa do putedo. E o Zé Cão ganhou. O Zé Cão fazia os gestos como foi, a mando do Valença, disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, era um campeão sem sair do seu canto, a lutar por merecer mais um quartilho que uma alma caridosa lhe pagasse...
O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom... E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração.

O Augusto das botas amarelas
Depois de ter sido o primeiro imperador romano e de ter imperado forte e feio durante 41 anos, menos sete do que o fascismo português, e depois de ter morrido faz hoje exactamente 2005 anos, Augusto, também conhecido como Caio Otávio ou Caio Júlio César Otaviano, apareceu em Fafe de chuteiras amarelas ou vermelhas, consoante, fazendo-se passar por defesa direito. Estávamos às portas do 25 de Abril de 1974 e era ainda tempo de botas negras. Menos o Augusto, que ia ao secador todos os dias e disfarçava muito mal como jogador de futebol.
A augusta figura coincidiu na AD Fafe com memoráveis jogadores como Zé Maria, Neto, Costa, Leitão, Cláudio, Ismael, Martinho, Cândido, Manuel Duarte, Nino, Testas, Alfredo, Daniel Lopes ou Valença, recém-tornado do Ultramar. Só Augusto destoava, quer-se dizer.
No entanto, apesar daquele aspecto colorido e aprumadinho, Augusto, não sendo génio, era genioso. Uma vez, num "amigável" com o Vitória de Guimarães, pegou-se à pancada tenho na ideia que com o Romeu, que também era de gancho e acabou por jogar mais tarde no Benfica, no Porto e no Sporting. O Augusto, não.
As chuteiras de Augusto estavam muito à frente do seu tempo, como hoje se sabe. E o cabelo de Augusto marcou uma época em Fafe. Na época seguinte, de facto, Augusto foi enganar para outro lado. Em Barcelos, no Gil Vicente, e depois disso a História perdeu-lhe o rasto.

P.S. - Esbarrei hoje sem querer na fotografia lá de cima. Encontrei-a na edição digital do jornal desportivo O Jogo do passado dia 19, ilustrando um artigo assinado por Filipe Alexandre Dias, sob o título "Jogar, combater e morrer na Guerra do Ultramar". A fotografia não está assinada, infelizmente, mas eu conheço-a desde moço, passou-me pela mão, tenho-a de memória, porque está lá um dos meus dois ou três ídolos da bola: o Valença, ou o Fafe, como era conhecido na tropa e naquela superequipa do FC Moxico - mais do que uma equipa de futebol, provavelmente um projecto político do regime. Claro que o Tónio (António Ribeiro, de baptismo) calha também ser meu amigo. Já falei algumas vezes dele aqui no Tarrenego!, a primeira das quais no dia 17 de Julho de 2011. Faço agora uma síntese, mais lá para diante me espraiarei. No retrato, para quem não conhece, o Valença é o segundo de joelhos a contar da direita de quem vê, com a criancinha e a bola à frente. E, posto que gozão-mor do reino, era um jogador do outro mundo!

Music was my first love 60

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Segurança e saúde no trabalho

Em que ramo é que trabalhas?", perguntaram-lhe. E o macaco respondeu: "No de baixo, por causa das vertigens..."

P.S. - Hoje, 28 de Abril, é Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho.

Também faço isto muito bem 376

Foto Hernâni Von Doellinger

Um gesto nobre, um sorriso nobel

Uma vez estive à beira de um Prémio Nobel da Paz. Digo à beira, como se diz na minha terra, e quero dizer mesmo ao lado, ao pé, como se diz em Lisboa, quase ombro com ombro: eu e o bispo Ximenes Belo por acaso acamaradados na loja do Adão Oculista da portuense Rua de Santa Catarina. Conhecíamo-nos por telefone e (meu) dever de ofício, mas o bispo não sabia e eu, ainda que pareça o contrário, sou envergonhado para meter conversa. Hora de ponta, casa cheia. O bispo famoso à paisana. As pessoas também. Os funcionários não. As pessoas pediam "faça favor, senhor bispo, passe à minha frente", os funcionários pediam "faça o favor, senhor bispo, é só para levantar, não é?", mas o bispo, num sorriso bondoso, desarmante, dizia naquela voz de anjo, se os anjos tiverem voz, uma vez que não têm sexo, "não, muito obrigado, muito obrigado, eu espero pela minha vez." E esperou. Esperou. Sempre sorrindo.
Naquela loja passavam-se realmente coisas espantosas. Outra maré, há anos, uma senhora, via-se que pobre, posto que asseada, notoriamente viúva, rodeada de filhos, todos pequenos, comprava uns óculos para o seu mais velhinho. Pediu, triste e envergonhada, mas honesta, se podia pagar em prestações, "prestações baixinhas". Foram chamar o dono do estabelecimento, o Senhor Adão Pinho, que se inteirou rapidamente do assunto e, sem grande conversa, nem prestações nem meias prestações, resolveu num estalar de dedos que a senhora levasse os óculos de graça, assim, e não se fala mais nisso. "Toma nota aí: já estão pagos!", disse à funcionária, e desapareceu no etéreo nada de onde tinha aparecido milagrosamente quando invocado. Tudo feito à meia-voz, por meias-palavras, de uma forma discreta, quase invisível, isto que não saia daqui, mas eu estava lá. E sorri.
Desde aquele dia passei a olhar o Senhor Adão com outros olhos, o que não admira, porque fui aumentando ou diminuindo as dioptrias, já não sei muito bem. Percebi então que Adão também era um anjo, embora essa parte não conste da Bíblia. Depois do gesto que o bom comerciante teve para com aquela pobre mulher, se me dissessem que o Adão Oculista, para além das suas lojas, era bombeiro voluntário, dador de sangue, irmão da Misericórdia, visitador de prisões, ajudador hospitalar, cuidador gracioso de doentes e idosos, servita não remunerado no Santuário de Fátima, sócio do FC Porto e que à noite andava pelas ruas da cidade a distribuir medicamentos, roupa e comida aos sem-abrigo - palavra de honra, eu acreditava. E acredito.
Não me levo muito a sério nem me tenho em grande conta. Sorrio-me de mim. Sou imodesto acerca de muito poucas coisas a meu respeito, porventura apenas de uma: julgo que hoje sou uma pessoa melhor do que era aqui há dez ou quinze anos. E antes, não desfazendo, era uma boa besta. Nunca serei um anjo, como aparentemente Ximenes Belo e Adão Pinho, mas, a verdade é esta, aos dois devo, entre outros poucos, as minhas melhoras.

Evidentemente estive várias vezes à beira de um quase Nobel, mas isso já é encomenda pataqueira. Lembram-se de José Manuel Durão Barroso, o multinacional lobista que foi primeiro-ministro de Portugal e presidente da União Europeia? Pois bem: Ramos-Horta (co-Nobel com Dom Ximenes em 1996) lançou a candidatura de Durão Barroso ao Prémio Nobel da Paz de 2008. Quatro anos depois, o prémio foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: só faltou um bocadinho.

P.S. - Publicado originalmente no passado dia 3 de Fevereiro. Hoje, 28 de Abril, é Dia Mundial do Sorriso, que há quem remeta para a primeira sexta-feira de Outubro.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 169

Foto Hernâni Von Doellinger

A estupidez não é doença, mas é viral

A gripe espanhola, ou pneumónica, apareceu em 1918, e matou entre 50 e 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Absolutamente viral, como hoje se diria. Viral. Isto é: um verdadeiro caso de sucesso, um êxito tremendo...

A gripe ou peste pneumónica foi uma pandemia provocada pelo vírus influenza. Só em Portugal continental matou mais de 60 mil pessoas. Um vírus é geralmente causador de doenças graves. A estupidez não é doença, mas é viral, e fica muito bem nas chamadas redes sociais, onde se rompem as palavras sem cuidar de se saber o que elas querem dizer. Viral acima, viral abaixo, tudo é viral, e os jornais todos iguais, que não querem ser menos estúpidos do que os outros, copiam e amplificam as tolérias da ditas redes sociais, tudo em nome de um clique, tudo em busca da audiência perdida. Agora, com o novo coronavírus à perna, pode ser que uns e outros, os simpatizantes e os encartados, aprendam - se souberem aprender e se conseguirem perceber o que se lhes passa à volta - o real poder da palavra viral e a guardem bem guardada para o que infelizmente lhe diz respeito.

P.S. - As primeiras sete linhas publiquei-as originalmente no dia 5 de Julho de 2016. É curioso...

domingo, 26 de abril de 2020

Aquele momento antes

Foto Hernâni Von Doellinger

Viagem da Circunvalação ao Mundo

O que mais se ouvia dizer por aqueles dias jubilares da segunda metade do ano passado, entre o Porto e Matosinhos, à porta dos liceus, nas galerias de arte, nos cafés, nas esquinas, nos autocarros, no metro e até nas trotinetas partilhadas, que ainda as havia, era: - Mas afinal quem foi esse Fernando Magalhães?...

P.S. - O navegador Fernão de Magalhães, nascido provavelmente em Ponte da Barca, Alto Minho, morreu no dia 27 de Abril de 1521, nas Filipinas. Entre uma coisa e outra descobriu a Circunvalação, e a Circunvalação é realmente um mundo.

Era uma casa muito engraçada

Foto Hernâni Von Doellinger

Cassiano Nunes 4

Atração

Não me canso de olhar
o cinema das nádegas.

Mistério do redondo:
por que transverbera?
o que mais me obceca?

No contorno da onda,
preciosa borracha,
o compasso dos lábios
em voluptuoso traço.

O que consideras
cacto aberrante,
talvez não passe
de matiz do gosto.


"Madrugada", Cassiano Nunes

(Cassiano Nunes nasceu no dia 27 de Abril de 1921. Morreu em 2007.)

Melhores dias Verão

Foto Hernâni Von Doellinger

Hoje não há umas vagenzitas?

Empratei o jantar da minha sogra: uma posta de bacalhau cozido com três dedos de altura por um palmo de comprimento, um ovo aberto ao meio, cinco batatas médias partidas em quartos, um dilúvio de azeite e duas pingas de vinagre branco, como ela gosta. A minha mulher colocou-lhe à frente aquela reprodução dos Himalaias em tamanho natural, e a minha sogra, 88 anos, mal-humorada por princípio e por prazer, resmungou: - Hoje não há umas vagenzitas?...
Não havia. Era segunda-feira e à segunda-feira cá em casa é assim, uma tradição que vem de Fafe. A minha sogra limpou o prato em menos de cinco minutos, mas sob protesto, que fique registado.

P.S. - Vagem, neste caso, é feijão-verde. Ou, melhor dito, vage. As vages, posso esclarecer, são ao almoço de quarta-feira para uma pessoa, com pescada quase sempre fresca. E outra coisa: com bacalhau, a minha sogra bebe um fundinho de vinho. Diz que é dado: bacalhau, portanto vinho. Mas isso é lá uma tradição dela...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 168

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 25 de abril de 2020

Não sei quem sou por dentro de mim

Pensou, líquido: - Não sei quem sou por dentro de mim. Olho-me no espelho do elevador, não tenho por onde fugir, e vejo-me apenas por fora. O espelho do elevador é o meu espelho único. Tento ser sincero com ele, justo comigo mesmo, olho-me olhos nos olhos mas só vejo os olhos que olham para mim. Vejo que os olhos que me olham vêem um velho sem passado e, parece-me, com pressa de envelhecer ainda mais. Saio à rua e caminho sem saber quem sou por dentro de mim.
E concluiu, sólido: - Acho que tenho a mania de que sou filósofo amador e um bocado poeta. Uma coisa é certa, sou parvo.

Também faço isto muito bem 375

Foto Hernâni Von Doellinger

Caetano da Costa Alegre 4

A negra

Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do Sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai.


Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada
Porque te velo eu.


Não chores mais, criança, enxuga o pranto
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.


No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.


Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;


Que outrora foste neve e amaste o lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.


Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo ou no jardim.


Tu tens o amor ardente, e basta
Para ser feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.


Caetano da Costa Alegre 

(Caetano da Costa Alegre nasceu no dia 26 de Abril de 1864. Morreu em 1890.)

O cão que lê

Foto Hernâni Von Doellinger

Inconvenientes de uma "manif" inexistente

Fui ver o 25 de Abril ao Porto. Porque, para quem não tem mais nada que fazer e é teso, o Porto é um sítio porreiro para se ver 25 de Abris e não é preciso comprar bilhete. No Porto há milhões de camones de passagem, milhares de portugueses desempregados coçando colhões e esquinas, trezentos e cinquenta portuenses residentes e uma praça e uma avenida destinadas ao 25 de Abril, às greves gerais, ao 1.º de Maio, aos carteiristas e aos vadios em geral, as quais, praça e avenida, são emprestadas pelo Sr. Pinto da Costa quando o Futebol Clube se esquece de ser campeão - o que em democracia é raro e altamente suspeito.
O 25 de Abril correu muito bem. Vintecincodeabrilou-se ali com grande pertinácia e depois acabou. Acabou, mas eu, que sou de lágrima fácil, estava com uma vontade de mijar que já não era só vontade, era um estado de emergência, e desatei a correr como um tolinho para o WC sob as escadinhas da Rua 31 de Janeiro com a Estação de São Bento e com a polícia de choque atrás de mim como se eu levasse um engenho explosivo na braguilha. Não levava. Estava apenas à rasca. À rasquíssima. E a retrete estava de portas fechadas. Por causa do feriado.
Que se segue: eu bem não queria, mas tive de ir, com uma mão à frente e outra atrás, às casas de banho da estação propriamente dita. Às tais, às míticas, às suspeitíssimas. O que se passou lá dentro não interessa, apenas faço questão de garantir que saí daqueles apertos com a honra invicta. A polícia, entretanto, desinteressou-me de mim e passou a perseguir um casal de lavradores do Marco de Canaveses que tinha vindo a uma consulta de otorrinolaringologia, ela com a infelizmência de um xaile vermelho às costas e ele com um saco de plástico na mão, sotaque da terra e "cara de marroquino". Nas varandas (ou sacadas, como se diz em Fafe) cantava-se "Grândola, vila morena" com uma afinação de oficina de automóveis. O relógio exterior de São Bento batia as quinze e quinze. A polícia também. Após a sova da ordem, as autoridades verteram nos autos que o perigoso saco continha um cartucho com 250 gramas de sementes de pepino compradas sem guia de remessa na Casa Hortícola do velho Bolhão, um toquinho de chouriço de colorau, meia sêmea, um taparuer com uma cebola da monda rachada em quatro e metida em sal grosso e vinagre tinto e dois olhos de azeite, uma garrafa de cerveja quase vazia de vinho, duas pastilhas avulsas para o enjoo e um canivete belga com seis centímetros de lâmina. Os dois indivíduos, um do sexo masculino e o outro não, entre os sessenta e os setenta anos, foram detidos por posse de arma branca. Os peritos em minas e armadilhas fizeram explodir o resto.

P.S. - Contava-se que havia um padre, famoso pregador, que fazia sempre o mesmo sermão. Só mudava o nome do santo. Ora bem: o grosso do texto acima foi publicado no dia 23 de Março de 2012 e para uma greve geral. Já o adaptei a um 1.º de Maio e hoje ponho-lhe o 25 de Abril. Palpita-me que não vou ficar por aqui...

Interlúdio fotográfico 244

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 24 de abril de 2020

25 de Abril, sempre!

25 de Abril e coisa e tal
Vinte e cinco de Abril sempre, nem que seja só às vezes. 

A dúvida dos conspiradores
Os conspiradores tinham apenas uma dúvida: marcar para quando o 25 de Abril? 

O 25 de Abril e o feriado
Por acaso o 25 de Abril calha sempre num ferido, e isso é porreiro para o povo que faz questão. Este ano é indiferente...

O bom do 25 de Abril
O bom do 25 de Abril é que se realizou no dia certo. Imaginem que tinha sido a 24...

O mal do 25 de Abril
O mal do 25 de Abril é que amanhã é outra vez 28 de Maio. O ano inteiro.

Como cogumelos

Foto Hernâni Von Doellinger

José Ángel Valente 6

Figura

De todo o que non fun
ficou a ausencia,
máis real que nos mesmos.

Coitelo da door do que non fumos,

fondo ferir o pranto do non nado.

Outeiros onde vín o moucho lonxe,

corredoiras da noite e sombra sombrecida
a dos meus eus sen mín fuxidos. 

Camino que non fixen,
amor que non amei e nome cego
de mín que ardeu sen terme sido dado.

"Cántigas de Alén", José Ángel Valente 

(José Ángel Valente nasceu no dia 25 de Abril de 1919. Morreu em 2000.)

Leden 800

Foto Hernâni Von Doellinger

Evaristo Martelo Paumán 4

A misíon dos bardos

[...]
Tendo lei, e forte o peito,
Dios de par, e espada preto,
ben probada;
¿Por que poñer seu dereito
do tempo incerto suxeto?
¡desdichada!
Quen queira vivir honrado
non das inxustas feridas
se lamente.
Será sempre asoballado
que se doi das recibidas
e as consente.

[...]

"Landras e Bayas", Evaristo Martelo Paumán

(Evaristo Martelo Paumán nasceu no dia 25 de Abril de 1853. Morreu em 1928.)

Alguns são mais iguais do que outros 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Os cães estão exaustos

Não sei se os cães conseguem aguentar mais quinze dias de estado de emergência. Estão exaustos! Regra geral nunca tinham saído de casa...

Interlúdio fotográfico 243

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Beber era um honesto modo de vida

A Bó de Basto contava. Já não não lembro se era história verdadeira de alguém da família antiga ou diz-que-diz-que a respeito de vizinhos lá da aldeia, liornas às tantas. Sei é que era um casal e que o casal se tratava por você - forma de tratamento muito mais rústica e ancestral do que cuidam as tias e os tios do então-vá e as sobrinhas do então-vem(-te).

(A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naqueles tempos, negros de fome e de fascismo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos, Cabeceiras de Basto, podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era, à falta de outros horizontes, um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se a acompanhar umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois ganindo por unto no eixo e nas rodas. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".

Na "casa do carreiro" comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os moços ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos por conta de outrem, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. (E já lá iremos, ao monte.)
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar. E o meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.)

Mas a história prometida. Pois marido e mulher, os tais, esses, os do primeiro parágrafo, também bebiam a sua pinguinha, isto é, davam-lhe pesado e faziam horário completo, de domingo a domingo, que o regime político não admitia gazeta. Que se segue: de vez em quando, à noite, o caldo entornava-se. Fosse pelo vinho, fosse pela falta de petróleo na candeia, que se chamava "luz", fosse pelo empurrão traiçoeiro do lume da lareira, o casal desavinha-se. Nada de grave ou físico, apenas desconversa. Ralhava um, ralhava o outro, cada qual ameaçava que: "Caralho que!...", mas nada. Até que uma maré, ele - só podia ter sido ele -, sacramentalmente dono da última palavra e mortinho por ir para a cama, arrumou a questã da melhor maneira que soube e pôde, que foi, virando-se para ela: "Ora meta-me o cu pelo nariz acima". Para logo remendar, coçando as partes com um entusiasmo que só visto: "Ora vá bardamerda, que até me enganei". E depois foram fazer meninos um com o outro, que naquela terra era assim e muito.

Enciclopedista fortuita e inocente, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?

A querida Bó de Basto contava belas histórias. E éramos felizes para sempre.

P.S. - Em Basto, no Inverno, era noite logo às cinco da tarde ou antes, mas ninguém se queixava e nasciam muitas crianças. Em Portugal era noite há mais de quarenta anos, e outros estariam em pior situação, suspeitava-se de bico calado lá naquele fim do mundo alumiado a "pitroil", e nunca percebi como é que aquele povo todo não morreu vítima de uma epidemia de incêndios vínicos e domésticos. Já agora: se a "luz" fosse a pilhas, uma novidade que chegou a Passos com o atraso considerado pelas autoridades como o mais conveniente, então chamava-se "foxe", devendo dizer-se "focse"...

Também faço isto muito bem 374

Foto Hernâni Von Doellinger

Orides Fontela 4

Fala

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)

"Transposição", Orides Fontela

(Orides Fontela nasceu no dia 24 de Abril de 1940. Morreu em 1998.)

Um pouco de sol (à sombra de Passos Manuel)

Foto Hernâni Von Doellinger

Benito Barros 3

Os meu poemas
Também de calcário volátil do fictício
Os alicerço,
Mas na argamassa se encere o vivido.

Melhor sina,
A dos verdadeiros barcos
Naufragados que desmemoriam
A caixa torácica dos cavernames

Na fatal sobrevivência das cracas.


"Um Ser tão...", Benito Barros 

(Benito Barros nasceu no dia 24 de Abril de 1957. Morreu em 2010.)

Foram gordas, foram...

Foto Hernâni Von Doellinger

De volta à fressura

Há pelo menos uma grande superficie do Porto que está a vender fressura às pessoas como se fosse para dar de comer aos cães. Mas é para a mesa das pessoas. As pessoas andam com fome e pedem a fressura. Nas lojas de congelados, as cabeças de pescada foram cortadas ao meio e as caras de bacalhau saem como pãezinhos quentes. As pessoas, que andam com fome e nunca na vida cozinharam (e não sabem cozinhar), agora olham para umas postas esquisitas, perguntam "que peixe é este?, é bom para quê?", os funcionários dos frigoríficos fazem o papel respectivo, inventam no momento um nome qualquer para o peixe e dizem que "é bom para o forno, para fritar, para a brasa, para estufar, para caldeirada, é bom, muito bom", e o peixe é uma merda mas as pessoas querem acreditar que é bom, muito bom, porque é multifunções e muito mais barato do que o peixe a sério e estão com fome. E levam. E são levadas. E está bem: o polvo e as lulas agora são potas. Filhos da puta que nos puseram assim. Nos talhos, o fígado para iscas e os ossos da suã são hits nacionais. Os pescoços de frango também e as asas é um ar que se lhes dá. As pessoas estão sem dinheiro e têm fome. As pessoas não têm emprego e as que têm trabalham para pagar impostos.
A ver se me faço compreender: sempre fui praticante de asas e pescoços de frango, de ossos da suã, de iscas de fígado, de caras de bacalhau e de cabeça de pescada, se for inteira. Fui e sou. Sei dar-lhes o valor e as voltas: cá em casa são petiscos. Ainda não necessidade. À fressura (deixem-se lá de malícias) é que nunca mais tornei.
E em miúdo até era eu quem ia ao Talho, a mando da minha mãe, comprar "um quarto de fresura" para a massa do almoço, "se faz favor". Só havia um talho na vila, e por isso era com maiúscula, e não há uma mãe como a minha. Se acham que é lugar-comum, isto da minha mãe, estão redondamente enganados. Perguntem em Fafe, chama-se Alexandrina e vão ficar admirados. Mas a minha mãe hei-de contá-la como deve ser mais lá para diante.
Já sabem que éramos pobres. Comíamos "fresura" porque era o mais em conta que havia aparentado com carne para comermos à semana. Eu aprendi a gostar e gostava sobretudo do rinca-rinca do cano. Já a parte do bofe fazia-me uma certa impressão e ainda hoje sou contra as chiclas. Ao domingo comíamos bife, é preciso que se note, porque a minha mãe tinha artes de ilusionista, truques de economia. A minha mãe fazia comida muito boa e devia ser ministra das Finanças.

A minha mãe passou por muito e diz que o 25 de Abril foi o melhor que aconteceu em Portugal. Isso e os títulos do FC Porto, que eram, a bem dizer, proibidos. A minha mãe não admite marcha-atrás. "Pobreza era no tempo do fascismo", diz a minha mãe, e os títulos do Benfica também eram. Mas, ó mãe, deixe lá o relato só por um bocadinho: estamos de volta à "fresura"?

P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Outubro de 2012, tempo da troika. A minha mãe tem razão quanto ao 25 de Abril. E a fressura estará de volta à mesa dos portugueses, mais dia menos dia. O desemprego já chegou, a crise bate à porta e o aperto de cinto será fatal como o destino - chamem-lhe austeridade ou outro nome qualquer...

Distanciamento social

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 22 de abril de 2020

O retrato de Salazar

Tive a sorte de conhecer a Senhora Dona Laura Summavielle mãe (1879-1971), uma mulher extraordinária que viveu uma vida muito à frente do seu tempo. Tal como eu a via do alto dos meus oito, nove anos, a matriarca da ínclita geração dos Summavielles era então uma velhinha toda guicha, franzina e pândega. No tempo da ditadura fascista, a  notável senhora tinha uma curiosa brincadeira que apelava à interacção de Fafe inteiro que lhe passasse por baixo da comprida sacada da casa da família, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Cinema. Fosse quem fosse. Eu também não escapei à partida, mais do que uma vez, e com muito gosto.
Comigo era assim: mal me via aproximar, a marota da Senhora Dona Laura, de lá de cima, dizia num falsete altivo porém educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que me caiu sem querer..
E eu lá apanhava. E era o quê? A fotografia mesmo do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que havia naquela altura e que não sei se ainda existem, para além do que eu guardo cá em casa. Exactamente: afinal o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuidem que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro. 



P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2011.

Baltasar Lopes 4

Saudade fina de Pasárgada

Em Pasárgada eu saberia
onde é que Deus tinha depositado
o meu destino...
e na altura em que tudo morre...
(cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu;
a vizinha acalenta o choro do filho rezingão;
Tói Mulato foge a bordo de um vapor;
o comerciante tirou a menina de casa;
os mocinhos da minha rua cantam:
indo eu, indo eu, a caminho de Viseu...)

na hora em que tudo morre,
esta saudade fina de Pasárgada
é um veneno gostoso dentro do meu coração. 


"Atlântico", Baltasar Lopes

(Baltasar Lopes, que também assinava Osvaldo Alcântara, nasceu no dia 23 de Abril de 1907. Morreu em 1989.)

Offshore, se fashavore 290

Foto Hernâni Von Doellinger

Jorge de Lima 6

[Vereis que o poema cresce independente]

Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,

coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.

Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...

Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.


"Livro de Sonetos", Jorge de Lima

(Jorge de Lima nasceu no dia 23 de Abril de 1893. Morreu em 1953.)

Alguns são mais iguais do que outros

Foto Hernâni Von Doellinger

Valentín Paz-Andrade 8

As palabras

Vén o ar ateigado de palabras,
cada mañá chamando aos nosos vidros,
para por a xermolar son e semente.
As palabras decote están falando
e somos nós os xordos á mensaxe
que no seo das sílabas carrexan.

Polas palabras somos outra cousa,
e non primaz materia dunha besta,
só desbravada en nós polas palabras.
Son palabras as ondas do gran río
da fala, que morre un pouco e nace
do mencer ao luar de cada día.

A eito marteladas nos falares
do pobo, que as mestura ao seu suor,
limadas cal semánticas moedas
nas forxas oficiais do saber,
sempre as palabras teñen lei  de onda
a develar na vida dos demais.

É de palabras a primeira música
que dá tremer de luz ao noso tímpano,
e de palabras o primeiro río
que verte ao noso canle súas ondas,
e se fai subterráneo en cada noite
para renascer no leito das auroras.

Denantes das palabras foi a choiva
linguaxe de cristais da natureza,
de verticales sílabas composto,
elemental vocabulario líquido
das claves seminales sobre a terra,
a descrifrar polas meniñas da alma.

Palabras insonoras baixo o sono
como peixes de acuarium apagado
que a memoria repesca na vixilia.
Palabras e memoria dúas forzas
que xa casadas nascen lonxe, lonxe…
no orbe prebabélico do home.

E cando chega a morte a nosa beira,
cando nos pasaporta para o nada,
o que de certo pasa e se rexistra,
o que nos deixa listos para o embarque
na dorna por Caronte tripulada…
é o naufraxio de todas as palabras.

"Cen Chaves de Sombra", Valentín Paz-Andrade

(Valentín Paz-Andrade nasceu no dia 23 de Abril de 1898. Morreu em 1987.)

Camino 799

Foto Hernâni Von Doellinger

O que fazia falta era um 25 de Abril

Conspiravam. Viviam numa satisfatória clandestinidade, numerados de Um a Doze. Mas tinham as suas fontes. Geralmente bem informadas. Eram os meados da década de setenta do século passado. Na reunião de Março, pela noute, em absoluto respeito pelas cautelas catacumbais religiosamente estabelecidas, desligaram o aparelho de televisão por alturas do TV 7, ligaram a telefonia no relato de um Espanha-Portugal em hóquei em patins, colocaram os óculos e apagaram a luz, esbarraram-se uns nos outros, partiram meia dúzia de chávenas e três copos, e os óculos, juntaram as múltiplas informações recolhidas à socapa no mundo exterior, assopraram-lhes cerimoniosamente o pó, decantaram-nas, apreenderam as entrelinhas, montaram o Puzzle, que era um cavalo malhado que dava para todos, mas à vez, pediram mais uma rodada de finos e quatro pires de tremoços, e concluíram que estavam prontos e imperiosos. "É preciso fazer um 25 de Abril", anunciou o Número Um. "E para quando é que marcamos isso?", perguntou o Número Dois.

terça-feira, 21 de abril de 2020

No tempo em que as pessoas falavam

No tempo em que as pessoas falavam, as paredes tinham ouvidos. Mas as pessoas falavam, mulheres e homens, porque era preciso, falar era respirar, e não vai assim há tanto tempo. Os cafés, as mesas de restaurante costumavam ser sítios de conversa, de tertúlia, de crítica, de protesto, de esgrima de argumentos. Ainda os nunos rogeiros e os marcelos rebelos de sousas não tinham sido inventados pela televisão e já nós sabíamos tudo de tudo, primeiro no Peludo e depois no Peixoto, evidentemente em Fafe. Futebol, política, Mário Soares e Álvaro Cunhal, pesca e caça, religião, padres fodilhões, música, alterações climáticas, vinho, teoria da relatividade, teorias da conspiração, medicamentos, bolo com sardinhas, gajas e automóveis, festival da canção, rácios bolsistas e sobretudo motorizadas, Zundapp vs. Sachs, sabíamos na ponta da língua e cada qual dava a opinião que se impunha, a opinião definitiva.
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros.
Nos restaurantes, o mesmo desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes...
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do 4-1-3-2 de Jorge Jesus, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto, estão vazias: já disseram tudo e não era nada.

(Atenção! As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via ao longe uma ou duas vezes ao ano...)

P.S. - Texto publicado originalmente no dia 17 de Agosto de 2016. E estamos na semana do 25 de Abril.

Também faço isto muito bem 373

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Duarte de Carvalho 3

Adoço-te as costas
com licor de acácia.
Espremo-te os rins:
um favo de dem-dém.

Vou fundo em ti
feroz
e oiço-te um ai:
faz eco em mim
a voz
do meu país in-tacto.


"Chão de Oferta", Ruy Duarte de Carvalho

(Ruy Duarte de Carvalho nasceu no dia 22 de Abril de 1941. Morreu em 2010.)

Caminho 798

Foto Hernâni Von Doellinger

Victoriano Taibo 6

O galego que non fala
na lingua da súa terra,
nin sabe o que ten de seu
nin é merecente dela.

"Da Vella Roseira", Victoriano Taibo

(Victoriano Taibo nasceu no dia 22 de Abril de 1885. Morreu em 1966.)

Levados, levados, sim!

Foto Hernâni Von Doellinger

A Mocidade Portuguesa era uma organização juvenil do Estado Novo e, em certo sentido-descansar-à vontade, complementava ou concorria na paz do Senhor com os escuteiros de que a Igreja Católica resolvera tomar conta, pelo sim e pelo não. Para os devidos efeitos, e a bem da Nação, a Mocidade Portuguesa era fascista, embora a rapaziada não fizesse ideia, e os escuteiros eram, nas desbragadas palavras do humorista brasileiro Juca Chaves, "um bando de garotos vestidos de idiotas, comandados por um idiota vestido de garoto". Consta que Juca Chaves teve de pedir desculpas pelo abuso. A Igreja, não.
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional, grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos, salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide, simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas, associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos, o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital, outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela Liberdade. Foram levados, torturados e assassinados pela Pide.

O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio. Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por favor, nem que seja mentira.

A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou estandartes, tinha fardas catitas, toques de clarim e toque de caixa, cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação nazi-fascista e hino privativo, Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim. Tinha também umas mochilas de lona verde-acastanhada muito jeitosas e tinha tendas, pás, picaretas, cantis e acampamentos, e eu invejava o mundo de aventuras daquela moçarada. E tinha a Chama, assim com capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e à volta de uma fogueira com as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho, ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Uma vez houve uma Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje esmagado pelo anfiteatro da Biblioteca Municipal de Fafe, o que demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola, actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás, de passo certo, levado, levado sim...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época, gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho havia uma nora desactivada, mais à frente uma mina já com motor, creio que do Sr. Mijão, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro e corresse a esticar-me o orelhame.

Queria também confessar o que se segue, porque esta memória não me larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho, esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que jeito. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é muito bem feito.

A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas, as cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar assisti a uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês.

(Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifício" ou somente "Servir". Ou Sabrina. Pois. E as SS eram a Segurança Social do Terceiro Reich, Hitler chamava-se assim para não se confundir com Hernâni e o Z não é de Zorro mas de Zeferino. A mim faz-me uma certa diferença: o Zorro sou eu, desde os livrinhos do Marreca, e Zeferino realmente não me dá jeito nenhum.)

P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Setembro de 2017. Justifica-se a repetição nestes tempos e nesta semana, por causa de uma certa e determinada nova "mocidade que passa". E faço votos que passe. Ou, melhor, que se passe...