segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Meu caro Chester: aqui na terra estão jogando futsal

Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal ajudante. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som porque ele não sabia falar de outra maneira.
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Fazia amigos com a mesma facilidade com que fazia inimigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho...
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
O Álvaro era, regra geral, do contra. Era um inquieto espírito de contradição. Tanto que, só para chatear, resolveu deixar-me a falar sozinho, quando tínhamos ainda tanto para conversar. 
Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, o Chester é uma história extraordinária e isto aqui é apenas um humilde lembrete. Álvaro Moreira Mendes. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua. Em Dodge City já teria.

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Outubro de 2017. O Grupo Nun'Álvares inventou o "futebol de salão" em Fafe e o Chester era a alma daquilo tudo. Ontem à tarde, na alegria da conquista da Taça da Liga Feminina de Futsal, lembrei-me dele. Agradeço às meninas. O Álvaro também há-de estar contente...

As meninas... dançam?

Foto Grupo Nun'Álvares

Lembram-se do futebol de salão? O que é que nos vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo rinque árabe do Palácio da Bolsa como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas. Para evitar confusões, o futebol de salão passou a chamar-se futsal. E é o sucesso que se sabe...

P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Julho de 2015. As meninas do Grupo Nun'Álvares, de Fafe, conquistaram ontem a Taça da Liga Feminina de Futsal, vencendo o Benfica, por 2-1, na final disputa em Loulé. Acreditem no que lhes digo: é um feito extraordinário!

De ressaca

O pontapé de ressaca, de uma forma geral, sai frouxo e torto. Dê-se-lhe o devido desconto: é de ressaca...

Não me lembro...

Passa das sete e meia da manhã e a Queima das Fitas ainda está a desfazer a tenda. Na Praia de Matosinhos e na Praia Internacional do Porto, dorme-se, mergulha-se, fuma-se, bebe-se, vomita-se e fornica-se. As esplanadas do Edifício Transparente, pejadas de garrafas em cacos e cadeiras partidas, parecem um campo de batalha sem cadáveres nem sobreviventes. Na Rotunda da Anémona, uma pequena multidão de ressacados espera de orelha caída pelo autocarro. Têm tratamento de claque de futebol, de gado: estão enjaulados e vigiados à distância de um bastão pela polícia de choque.
Três miúdas cambaleiam pela Avenida de Montevideu, aparentemente em direcção à Foz. Vão vestidas. Nos intervalos entre cabeçadas contra painéis publicitários e tropeções nos mecos de delimitação do passeio, pedem boleia aos carros que passam. São mesmo miúdas, caloiras da vida, naquela idade e naqueles corpinhos que o sacana do arguido aproveita sempre para se defender, dizendo: "Senhor Doutor Juiz, ponha-se no meu lugar".
Uma das raparigas salta para a estrada, faz sinais ostensivos, quase desesperados, para que os carros parem e as levem dali. Só as buzinas lhe dão troco. E os trolhas que vão para as obras em carrinhas cheias de pressa e juízo mandam-lhe a boca da ordem, "Ó filha, és toda boa", mas boleia é que nada. Um crime. Quero dizer, o piropo bronco. "Foda-se! Ninguém tem compaixão", lamenta-se a miúda, mais para si mesma do que para as outras, num desgosto que só visto.
Ela é nova e não sabe. Às vezes há quem tenha "compaixão", "compaixão" até demais. E é aí que o tribunal entra na história...

P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Maio de 2012, sob o título "Sexta-feira da compaixão". Hoje, 28 de Fevereiro, é oficialmente Dia da Ressaca. No Brasil.

Nada de novo a oeste de Pecos

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Dieta, entre o jejum e a abstinência

A nossa dieta mediterrânica foi elevada a Património Imaterial da Humanidade em Dezembro de 2013.
o que eu gosto mais na dieta mediterrânica, para além da comida propriamente dita, é o facto de se chamar dieta, o que me sossega sobremaneira a consciência, embora me alvoroce o estômago, os intestinos, o fígado e as articulações dos pés, das mãos, dos joelhos e dos cotovelos, para não falar do resto. Mas é dieta e temos de obedecer. Uma dieta feita, paradigmaticamente, à base dos ossinhos da suã da Tasquinha da Alice, em Bobal, Mondim de Basto, como quem vai para as Fisgas de Ermelo, entalados, os ossinhos, entre salpicão caseiro e moiras encantadas e um naco de orelheira para desenfastiar e duas ou três costelinhas e meia dúzia de fatias de toucinho com o sal no ponto e batatas sabendo a terra e olhos de couves geadas pela madrugada e feijão vermelho da leira ao lado e por cima alho picado e azeite da fartura e do melhor mais um tintinho honesto e de malga para molhar a palavra. Produtos frescos, locais e produzidos em sintonia com os ciclos astrais e os ritmos da natureza, como muito bem preconiza a UNESCO. E eu, nestas coisas, respeito implacavelmente a UNESCO.

Depois gosto também da denominação ela própria. Património Cultural Imaterial da Humanidade. Gosto da pomposidade das maiúsculas e gosto da palavra "Imaterial", porque, pensando bem, é uma palavra que, não sendo sólida nem líquida, resvala sorrateiramente para o domínio do "Gasoso" - o que, com vimos antes, confere...

P.S. - Publicado originalmente no dia 6 de Maio de 2021. 

Deus nos perdoe a fartura...

Foto Tarrenego!

A outra face

Deu então a outra face e, a verdade é só uma, ficou sem cara para aparecer.

P.S. - O estatuto de objector de consciência foi publicado no dia 27 de Fevereiro de 1987.

Com os ursos

Mandaram-no jogar ao pau com os ursos e ele foi. Até hoje...

P.S. - Hoje, 27 de Fevereiro, é Dia Internacional do Urso Polar.

Nas horas vagas o tempo faz caretas

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Conhé, Kiki e Caló

Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. É assim que os trago na cabeça há mais de cinquenta anos, e digo-os, aos nomes raros, antigos e melodiosos, como se fossem poema, letra de festival da canção escrita por Ary e cantada por Simone. Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Já lhes apreçaram o ritmo lanceiro de lengalenga, a precisão sincopada de ladainha, a musicalidade silábica de balada sustenida? E são apenas nomes, nomes de jogadores de futebol, protagonistas de uma famosa equipa do União de Tomar em tempo de primeira divisão, na passagem da década de sessenta para a década de setenta. Depois destes sete magníficos poderiam vir, mais adiantados no terreno, como hoje se diria, o Bilreiro ou o Araújo ou o Lecas ou o Leitão ou o Alberto ou o Dui ou o Totói, que era irmão gémeo do Djunga, também colega de equipa, ou outro ou outros, mas de todos estes não me lembro na velha oração que sei de cor. Tive de ir à procura...
Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. Os meus amigos, que são também magníficos mas menos do que sete, estão fartos de me ouvir. Já se riem de mim quando eu começo. Fazem pouco. Mas eu insisto e digo, e recito, e canto: Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. É claro, não são os Cinco Violinos do Sporting fidalgo nem a superequipa do imparável Benfica da década de sessenta. Tampouco são o saudoso Belenenses de Vicente e Matateu ou aquela linha recuado do FC Porto afinada em érre e formada por Rui, Rodolfo, Ronaldo, Rolando e Guedes, só para destoar. Não são, realmente. Mas, palavra de honra, são os meus cromos preferidos.
Ainda por cima, o Cláudio, seguindo o bom exemplo do Djunga, viria depois a jogar no meu Fafe, parece-me que após passagem pelo Riopele. Creio que morou na "Torralta" praticamente a estrear e, se não me engano, era pai do Hélder e do Toni. Com os anos transformara-se em defesa central, um portento de técnica em souplesse, lento mas geralmente eficaz, imperial, suava em bica mesmo em pleno Inverno, evaporava-se em campo, era o primeiro construtor e líder da equipa, gostava de fintar os avançados adversários e fazia gala do passe de letra, inclusive na marcação de penáltis.
Mas isto tudo a propósito de quê? Ah, já sei! O Sporting Clube de Tomar, primeira filial do Sporting Clube de Portugal, e que não tem nada a ver com o União Futebol Comércio e Indústria de Tomar, mais conhecido como União de Tomar, e que é o que aqui verdadeiramente interessa, foi fundado no dia 26 de Fevereiro de 1915. E para quem não sabe: no União de Tomar chegou a jogar Eusébio, já preso por arames, abandonado pelo Benfica e a estragar o final de carreira. Mas também não consta da minha cantilena mágica...

Os fundamentos dos jogo

Foto Hernâni Von Doellinger

Quem com ferros ferros com ferros ferros

O grande problema do engolidor de espadas era a azia. Mudou de ofício, por indicação médica...

O faquir

Homem que é homem não dorme. Passa pelas brasas. E sem ais nem uis!

Os engolidores

Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.

P.S. - Hoje, último sábado de Fevereiro, é Dia do Engolidor de Espadas.

País de gigantones que passeiam a importância e o papelão

Foto Hernâni Von Doellinger

O número

O famoso comediante subiu ao palco, aproximou-se do microfone e anunciou que tinha um número para apresentar. Apresentou o cinquenta e três e foi um sucesso.  

Um grande nome

A organização tinha prometido um grande nome e cumpriu satisfatoriamente. Quando as luzes do palco se acenderam e foi anunciado, o comediante chamava-se, com efeito, José Manuel-António Ferreira Rocha Vieira da Silva Pereira Gonçalves Ribeiro e Castro Melo Antunes Bastos Monteiro Neves Brochado Macedo Nogueira Santos Oliveira Costa Rodrigues Martins Carvalho Marques Almeida Cunha Pires Lopes de Perestrelo e Lencastre-Maldonado.

P.S. - Hoje, 26 de Fevereiro, é Dia do Comediante. No Brasil.

Rir, de quê?

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Às armas! Às armas!

Mão ante mão, Portugal caminha para ser um país de pistoleiros. Há registos de mais de 210 mil licenças de porte de armas válidas, e só no ano de 2020 foram emitidas 13 mil novas autorizações. Portugal é um dos países da União Europeia com mais armas de fogo. As autoridades policiais estimam em mais de milhão e meio o número de armas legais, enquanto estatísticas citadas pela comunicação social contabilizam 21 armas por cada 100 habitantes. Agora imagine-se o que vai aí de revólveres, espingardas e carabinas sem bilhete de identidade! Os especialistas em segurança costumam dizer que a corrida ao armamento é um sintoma da crise. Pois deve ser. E temos então o faroeste à porta. Os políticos há muito que não nos são de confiança e a pobreza galopante com que eles nos castigam está a pôr-nos a desconfiar uns dos outros, cá em baixo, onde devíamos ser unidos mas os bagos de arroz pingam a conta-gotas, quando pingam, e não chegam para todos. Colegas de trabalho tramam-se uns aos outros em nome da sobrevivência, as passadeiras nas estradas são cada vez menos local de tréguas e até os irmãos já foram mais fraternos do que são. Se quem me lê ainda tem coragem para sair à rua, repare como as pessoas estão cada vez mais agressivas umas com as outras nas filas dos supermercados. E é para pagar! Um destes dias desata tudo aos tiros. E seremos as vítimas do nosso fogo cruzado.
Entre mortos e feridos, safam-se os de lá de cima. Como sempre.

P.S. - Samuel Colt obteve a patente dos Estados Unidos para o seu revólver Colt, o dos cobóis, no dia 25 de Fevereiro de 1836. A propósito, diz-se que se diz: "Abraham Lincoln tornou todos os homens livres, mas Samuel Colt tornou-os iguais." Isto é, digo eu: mortos.

Na fila para o Céu

No chão de cimento do cemitério jaz, abandonada e fria, uma senha de vez. O famigerado ticket, ou tiquê, como nos dá muito mais jeito dizer, e dá-nos sempre muito mais jeito dizer mal, não é? "Puxe", manda a senha número E29. "Puxe". Pensei: poderia dar-se o caso de ser esta a solução desenterrada por espertos sepultadores para organizar as dezenas ou centenas de defuntos que diariamente se acotovelam aos portões dos cemitérios sobrelotados, à espera de vez, à espera de vaga. (Os mortos portugueses têm geralmente medo de serem queimados vivos e, como resultado, num país com apenas 92 mil quilómetros quadrados, os nossos campos-santos rebentam pelas costuras, as campas não chegam para as encomendas.) Mas não: a coisa não é assim tão terrena, pensei melhor, isto vem, upa, upa, lá de cima. É assunto de almas e não de corpos. É. O Céu está equipado com pelo menos um dispensador de senhas de vez, tive a certeza e tinha a prova. Percebi tudo. Quer a salvação eterna? Tire o número e vá para a fila, essa é que é essa! "Mas que bizarra epifania, lá se me foram os fundamentos" - lamuriei-me, rangendo os dentes. - "Até Tu, meu Deus?! Que tristeza! Onde o negócio e a burocracia já chegaram"...

Livro das lamentações

O dinheiro não cai do céu. E é pena.

P.S. - No Antigo Egipto, hoje, 25 de Fevereiro, seria Dia de Nut, deusa do céu e guardiã das estrelas.

Outras guerras...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O banheiro e a banheira

Havia o banheiro. Que era um senhor geralmente concessionário de um pedaço de praia camarária e que, pelo Verão, na chamada época balnear, alugava barracas e cadeiras, e disso fazia modo de vida para o ano inteiro. Havia o banheiro. Que era um senhor robusto de calças arregaçadas que se embrulhava numa vestimenta de oleado de cor mais ou menos berrante e levava ao banho de mar, a bem ou a mal, adultos enfermos e sem poder de locomoção ou crianças renitentes e ganintes, como no meu tempo de miúdo, na Colónia Balnear Doutor Oliveira Salazar, na Gala, Figueira da Foz, ou ainda hoje em dia no ritual do banho santo de São Bartolomeu do Mar, Esposende. Portanto havia o banheiro. E havia a banheira. A banheira era a mulher do banheiro.
Agora com esta seca toda, não sei...

Uma mão lava a outra

Uma mão lava a outra. E as duas lavam os pés. E lavam as pernas e os braços e os sovacos e a barriga e as costas e os tomates e ilhas adjacentes e o pescoço e as orelhas e a cara e o cabelo ou a careca. É. Uma mão lava a outra. Mas cuidado com a água...

Que seca!

Madalena chorava por tudo e por nada. Um desperdício, nos tempos que correm...

O rio que ri, a ponte que aponta, o banco que abanca

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

O sedutor

Era um sedutor de mão cheia. Adorava apalpar cus...

P.S. - Hoje, 23 de Fevereiro, é Dia da Sedução.

Poderosa

Foto Hernâni Von Doellinger

Já não vamos para velhos

A verdade é esta: biblicamente falando, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu de repente aos 969 anos. Era assim. E agora? Agora andamos à rasca para chegarmos aos sessenta e damos graças a Deus se alcançarmos os setenta. O que estará por trás desta alteração tão radical? Glaciares, asteróides ou tão-só falta de fé, não tenho a certeza, mas creio que a segurança social também já não aguentava...

A sarça ardente

Quando Moisés disse todo vaidoso "A minha vida dava um filme", Deus ficou bastante chateado, chegou lume ao monte e proclamou: - Agora apaga-o, que o Noé gastou-me a água toda.

Noé faleceu aos 950 anos, inesperadamente

Noé, como todos os homens especialmente abençoados por Deus, era um incorrigível optimista. De hora a hora, dia após dia, durante quarenta dias, espreitava à janela da Arca, desviando a cortininha de chita estampada em degradê, e dizia à mulher: "É só um aguaceiro"... 

O terceiro homem

O terceiro homem foi Abel. Adão foi o primeiro, como o próprio nome indica; Caim, o segundo; e Abel, o terceiro. A seguir veio Sete, que, pela ordem natural das coisas, deveria ter sido Quatro, mas a Bíblia é como é e quanto a isso nada. Caim matou Abel, numa história negra muito bem contada pelo jornalista, espião e escritor inglês Graham Greene, que morreu há coisa de trinta anos. O livro deu filme de Carol Reed, que meteu Orson Welles e ganhou Cannes, BAFTA e um Óscar da Academia. Óscar evidentemente acúrsio.

O pecado original

Corria tudo muito bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, uma maldadezinha que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.

P.S. - O dia 23 de Fevereiro de 1455 é geralmente aceite como data da publicação da chamada Bíblia de Gutenberg, o primeiro livro impresso com caracteres móveis metálicos.

Façamos o homem à nossa imagem e semelhança

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Rússia: o dia do ataque

Eu se fosse a Ucrânia punha-me a pau. A pauzíssimo! Amanhã é feriado nacional na Rússia - é Dia do Defensor da Pátria ou Dia da Defesa. E a melhor "defesa" é o ataque, não é?...

E eis que era um grande dragão vermelho

Foto Hernâni Von Doellinger

Uns para os outros

José deu uma facada a António. António deu um tiro a José. É a vida! Temos de ser uns para os outros.

P.S. - Hoje, 22 de Fevereiro, é Dia Europeu da Vítima de Crime.

O homem profundo

Era um homem profundo. E metódico. Dizia amiúde: - Penso agora, logo existo.

Pensamento do dia

- Gosto muito de pensar.
- O mundo?
- O gado.

A raiz ao pensamento

Quando o poeta disse "Não há machado que corte", levaram-lhe logo uma serra.

P.S. - Hoje, 22 de Fevereiro, é Dia do Pensamento ou Dia Mundial do Pensamento.

Com a casa às costas

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

O periquito-da-carolina

O último periquito-da-carolina morreu no dia 21 de Fevereiro de 1918, em cativeiro, no Jardim Zoológico de Cincinnati, EUA. Chamava-se Incas e era macho. Que pena o nosso Quim Barreiros não saber destas coisas. Conhecesse ele a triste história do periquito-da-carolina e certamente já lhe teria feito uma cantiga a condizer...

Offshore se fashavore 287

Foto Hernâni Von Doellinger

Há palavras com piada fina

Gosto de nomes, gosto do falar antigo, gosto das palavras. Gosto de palavras com piada fina, palavras como parreca, como esbraguilhado, como caguinchas, como cachicha, como pinante. Mas ainda gosto mais de palavras desalinhadas, subversivas, fora-da-lei. Matreiras e despudoradas. Gosto de palavras que não são o que parecem. Aprecio especialmente as palavras que violam a ordem estabelecida, provocadoras, palavras que viram a norma de pernas para o ar e a abusam, como por exemplo, sem ofensa para os presentes, solhão, cordão, pontão, estradão, picão ou calção.
Cá está. Cá estão: solhão, cordão, pontão, estradão, picão e calção, palavras rematadas com o famoso sufixo "ão", unanimemente considerado pelos mais reputados gramáticos como um dos sufixos por excelência para a formação de aumentativos. E, no entanto, para quem sabe das coisas, solhão é uma espécie de solha mais pequena, cordão é uma corda de bolso, pontão é uma pontinha sobre um ribeiro, estradão é uma estrada estreita e geralmente em terra esburacada, conveniente para ralis, picão é uma picareta diminuta, ferramenta de mineiros, e calção é cueca ou calça curta. São excepções que confirmam a regra? Não, pelo contrário: são palavras que querem que as regras se fodam.
Evidentemente a palavra pilão levar-nos-ia muito mais longe.

Sou esbraguilhado e não sabia

Esbraguilhado, de acordo com a definição dicionária, é o tipo que "tem a braguilha desabotoada". As braguilhas há que anos não são de botões, mas não posso negar que umas quantas vezes já saí de casa com a ferramenta a arejar, esquecido completamente de puxar o fecho-éclair para cima, por pressa ou por idade - ainda não cheguei a uma conclusão. No entanto, foram acasos, excepções, eu morra aqui se não é verdade. Nesse sentido, portanto, não me vejo como um genuíno esbraguilhado.
Porém. Esbraguilhado também quer dizer o tipo que anda "com fralda da camisa saída". E aqui sou eu, todo e completo: esbraguilhado de corpo inteiro, que não meto as fraldas para dentro há mais de quarenta anos, nem nos dias raros e cerimoniosos de uso de casaco. Jamais.

Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, até ontem e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças a Deus. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário. Um milagre.
Depois tive a sorte de me calhar o professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.

Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas, tende a escrever asneiras. E eu não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri ontem a palavra esbraguilhado e gostei dela. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras, que é para o que o Tarrenego! me serve.

O ânus da prova, mais uma vez

Eu, por exemplo, digo doénte em vez de doênte. Digo mãe em vez de máim. Digo meio quando é meio e não maio. Digo têlha quando é telha e não talha. Digo coêlho quando é coelho e não coalho. Digo cóio em vez de côio. Digo frónha em vez de frônha. Digo cachicha em vez de caxixa. Digo ferraménta em vez de pénis. Quer-se dizer: digo como era costume dizer-se na terrinha. Resultado: chamam-me parolo, labrego, matarruano, riem-se de mim.
Já o outro, urbanita de grande metrópole, frequentador de mundo e telejornais, ajeita delicadamente os botões de punho de dezoito quilates, afaga a gravata hermès sofisticada e cara, faz biquinho e diz, finíssimo porém acutilante, ânus da prova. Ânus da prova, é o que ele diz! Ânus da prova para aqui, ânus da prova para ali, enche a boca de ânus da prova! E chamam-lhe ó-doutor, jurista, comentador, especialista em molduras penais. E ninguém se ri.

Por outro lado. "A minha pátria é a língua portuguesa", escreveu o nosso Fernando Pessoa. "A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. Um povo só começa a perder a sua independência, a sua existência autônoma, quando começa a perder o amor do idioma natal. A morte de uma nação começa pelo apodrecimento da língua", escreveu Olavo Bilac, o brasileiro e sensato.
Bilac (1865-1918) e Pessoa (1888-1935). Não quero saber aqui quem é ovo ou quem é galinha, nem me interessa como assunto, de momento, o miserável, escusado e alegado acordo ortográfico. Lembrei-me foi dos professores doutores da mula ruça, traidores à pátria, que enchem a boca de "periúdos", de "interésses", de "rúbricas", de "perzeveranças", de "mediúcres". Enchem a boca e apodrecem a língua. Apodrecem a língua e matam a nação.

António Costa, por exemplo. Já era tempinho de aprender a falar português, depois de, em 2015, ter aprendido a não falar mandarim. Não há lá pelos corredores e gabinetes de São Bento ou no Largo do Rato quem saiba ensinar ao nosso ainda primeiro-ministro a basezinha das regras de concordância, alguém que o proíba de comer sílabas enquanto fala? Falar com a boca cheia é, para além do mais, falta de educação. 

A minha língua é o fafês

"És um caguinchas!", chamou-lhe. "E tu és um parrano!", chamou-lhe o outro. Todos os dias a mesma toléria, aqueles dois: colegas de escola, camaradas de armas, amigos do peito (mamaram da mesma ama), parceiros de quartilhos e do falar antigo, mas, mal se entornavam no tinto, escamavam-se por dá cá aquela palha. - Que tal a pinga? - Calar... -, isto antes do destruete, ali à frente de toda a gente: o borra-botas, o cagão, o moncoso, o ranhoso, o piolhoso, o chulezeiro, o lamprancho, o pinante, o larilas, o maricandeiro, o azeiteiro, o boca-rota, o boca-suja, o leva-e-traz, o lambe-conas, o chupista, o choupilo, o mal-ajambrado, o todo-tirone, o lonchanei, o pinto-calçudo, o côdeas, o broeiro, o minguches, o cachicha, o piça-fria, o caga-na-saquinha, o corno, o sacrista, o licranço, o pascácio, o colhões-dácio, o videirinho, o sebento, o gijo, o catinana, o belga, o caiçara, o desgraça, o fastio, o adeus-ó-vai-te-embora, o puta-velha, o boxevista, o já-me-tinhas-dito, o escova, o morgado, o penquicite, o bastelo, o bítala, o alma-grande, o meia-foda, o chega-rebos, o gibreiro, o armante também conhecido como senhor-caguei-pra-ele, o peneirento, o doutor-da-mula-ruça, o molho-de-ossos, o lingrinhas, o pau-de-virar-tripas, o meu-rico-menino, o remelado, o aluado, o matarruano, o burgesso, o chorinhas, o bronquite, o bom-serás, o enjoado-de-merda e o ganante, que tinha artes de desaparecer na hora das contas. Os do costume, portanto. Ainda por cima, com o molageiro, calistro profissionalizado e moina residente na mesa do canto, sempre a meter bedelho e carvão como quem não quer a coisa. Que se segue? Apartava-os o alemido - "Bonda!", mandava ele, guindando-se da cadeira que já se lhe formatara ao cu, e ia às carreiras botar água na fervura antes que desse para o torto, escarmentado por mor daquela vez em que o liorneiro pôs tudo aos tiros só por ter chamado cosmopolita ao lincréu...
Quem me contou foi o anzoneiro.

P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Maio de 2017, em versão curta. Hoje, 21 de Fevereiro, é Dia da Língua Materna. E a minha língua materna, perdoem-me a expressão, é o fafês...

Gosto da palavra parreca

Gosto de nomes, gosto de palavras. Gosto do falar antigo: gosto de dizer que está "tudo na ponta da unha", quando me perguntam "como é que vai essa merda?", gosto de dizer que é "daqui, detrás da orelha", quando me perguntam "que tal?" a propósito de uma pinga de arrebenta que fazem o favor de dar-me a provar, verde tinto de preferência.
Gosto da palavra parreca. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis ao pirilau. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo) até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie.
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca.
Diga-se em abono da verdade, o doce resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber, até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes. Era coisa para umas horas, se respeitada na íntegra. 
Quando nos vinha visitar, às quartas-feiras, pelos 16 de Maio e na Senhora de Antime, a querida Bó de Basto trazia-me sempre uma mancheia dos tais rebuçados e, infalível, uma parreca para me entreter a tarde. Foi decerto daí que eu fiquei freguês. 

P.S. - Publicado originalmente no dia 25 de Junho de 2015.

Gostamos é de vinhaça, viola e bordoada

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Eram pobres e tinham dono

Antigamente a caridade tinha dia certo, e era um descanso. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e eram assim para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou na Câmara, nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.

(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações.)

Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses mais ricos seriam os nossos ricos e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.

Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos que ainda por cima tinham as mãos sujas.

(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)

Graças a Deus, isto era só antigamente.

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Setembro de 2021, sob o título "A caridade tem dias". Hoje, 20 de Fevereiro, é Dia Mundial da Justiça Social. E também Dia do Animal de Estimação.

E as pessoas de estimação?

"Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia uma vez a capa do semanário Expresso. Acontece no tempo e no país certos. Um tempo e um país em que os animais são de estimação, mas as pessoas não.

P.S. - Hoje, 20 de Fevereiro, é Dia do Animal de Estimação. E também Dia Mundial da Justiça Social.

Até ao fim...

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Que se foda!...

Estão a ver esses maratonistas bissextos mas cheios de intenção que treinam aos domingos de manhã artilhados com todos os matadores, como por exemplo aquele cinto tipo canivete suíço onde acomodam boiãozinhos de várias cores e feitios, barras energéticas, bananas, ananases, pepinos, couves-galegas, sandes de marmelada com tulicreme, tremoços, caldo de nabos, as chaves de casa, do carro, do totobola e do euromilhões, um par de algemas, um bastão extensível, lingerie de senhora e um spray de pimenta forte? Estão a ver? Pois era um desses com um daqueles.
O homenzarrão de calções de licra pelo joelho passou por mim no meu Passeio Atlântico, em Matosinhos, e naquele exacto momento despencou-se-lhe do extraordinário cinto multifunções um dos frasquinhos de plástico. Aos meus pés. Eu, que só quero ajudar, gritei "Olhe, caiu-lhe um boião!", vergando-me para apanhar a garrafinha e levá-la ao dono, e bem me custou. O superatleta, talvez apenas cinco metros à minha frente, ouviu-me, sempre correndo, virou levemente a cabeça e sobretudo o braço direito num gesto redondo e grande, creio que metendo-nos no mesmo saco a mim e ao vasilhame perdido, para tonitruar, desportista até mais não:
- Que se foda!...
E lá foi para casa assapar na mulher e comer cinco frangos de churrasco sem picante em somente 1h43m36s, tudo incluído.

Como apolos

Foto Hernâni Von Doellinger

Campeão de bilhar de bolso

Era um atleta de mão cheia. Dele se dizia, e com razão, que dava cartas no jogo de bilhar. Passou ao lado de uma grande carreira, exactamente porque nunca percebeu que bisca lambida é uma coisa e as três tabelas são outra. As duas juntas, com efeito, não fazem modalidade.

P.S. - Hoje, 19 de Fevereiro, é Dia do Desportista. Ou Dia do Esportista, como se escreve e diz no Brasil.

Egosismo, de Orlando Castro


Vem aí. "Egosismo", a poesia pós-Angola
do jornalista Orlando Castro. Obra editada pela Perfil Criativo, com prefácios de Eugénio Costa Almeida (sobre o livro) e de José Filipe Rodrigues (sobre o autor).

Dupla nacionalidade

Foto Hernâni Von Doellinger

Quem não tem gato esfola cão

Diz o povo antigo, a sua proverbial sabedoria, que Guimarães esfola gatos e mata cães. Eu parece-me que devia ser proibido...

Fim da linha, fim do mundo

Foto Hernâni Von Doellinger

Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, ainda vão encontrar quem conte como fez. Perguntem ao Gino.
Depois a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro ao Porto e tornar-me a casa à noite, Fafe desistiu do comboio e queixou-se muito quando lho "tiraram".
Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E agora é a pandemia a fazer-nos ilhas. Parece que estamos proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

P.S. - Publicado originalmente no dia 23 de Novembro de 2013. 

A diferença entre panache e panachê

Foto Hernâni Von Doellinger

Auto-Garage Avenida. Gosto deste nome assim. Lembra-me Monsieur Hulot, mas não é por isso. Sou um tipo 
démodé: gosto de garages, de equipes, de cabines, de omoletes, de camionetes, de bicicletes - palavras que já não se usam (há quem não tenha sido informado), que eu obviamente não uso, mas que mantêm um certo e determinado je ne sais quoi. Esta preciosidade sobrevive em Guimarães, na Avenida Dom Afonso Henriques, logo abaixo dos restos mortais do Teatro Jordão. Teve também certamente melhores dias, mas o panache ainda lá está. E eu disse panache, não disse panachê.

P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Novembro de 2013. Finalmente recuperada e reabilitada pelo menos de fachada, a "nova" Garagem Avenida foi inaugurada no passado sábado.

Da pornografia às artes performativas

Foto Hernâni Von Doellinger

Riscado da lista de pagamentos da Capital Europeia da Cultura 2012, o Teatro Jordão está para ali, com todo o aspecto de abandonado e esquecido, a um mês de fazer 75 anos. É mais uma triste metáfora do desgraçado país que somos. Já li sobre reabilitações, orquestras sinfónicas, bandas, academias, artes dramáticas e visuais, universidades, estudos, anteprojectos, projectos - e nada. Tretas e mais metáforas. Havia umas obras marcadas para terem início em 2013 e eu não sei porquê mas não acredito nelas. Já não há metáforas que aguentem. Não sei o que Guimarães pensa ao certo do caso, mas a mim parece-me que o azar do Jordão é a vizinhança: o mau-olhado do Centro Cultural Vila Flor que lhe fica resvés e come tudo, tudo, tudo, como o Sebastião da ancestral cantiga.
Também não sei o que o Teatro Jordão significa realmente para os vimaranenses e se a cidade reivindica a preservação física da velha sala de espectáculos. Sei o que o Jordão significa para mim, mas a minha memória vai para além das pedras. A casa pode vir abaixo, que as recordações daqui não saem.
"Chove em Santiago", o filme de Helvio Soto sobre os últimos dias do governo de Salvador Allende e o golpe militar no Chile, vi-o pela primeira vez no Jordão de casa cheia e a explodir de repente numa enorme manifestação antifascista, comício de ignição espontânea, de raiva, o pessoal de pé em cima das cadeiras, de punhos cerrados e erguidos, com uma única e cada vez mais vociferada palavra de ordem - Filhos da puta! Filhos da puta!! Filhos da puta!!!
Andávamos ainda com o fogo do 25 de Abril no rabo e ninguém nos aturava. Bons tempos aqueles, havia sonhos.
O "Jordáohe", como se chama em "Guimaráes", tinha um excelentíssimo restaurante nos fundos e foi também o cinema dos meus primeiros filmes pornográficos. Era a novidade. A pornografia acabara de chegar a Portugal, com a bendita liberdade, que afinal é sempre um pau de dois bicos. Devo esclarecer, por falar nisso, que os filmes pornográficos do Jordão faziam muito mal aos intestinos, pior do que garrafão de vinho doce bebido de uma assentada. Nos intervalos era um ver se te avias para ir à retrete, filas imensas de braguilhas aflitas à porta das sentinas, porque os urinóis para o caso não serviam.
Quando me internacionalizei, um ou dois anos depois, em França, pude verificar que com os estrangeiros, muito mais batidos na matéria, a coisa funcionava de maneira diferente. Para além de cada qual poder escolher o lugar que quisesse na sala praticamente às moscas, não era preciso esperar pelo intervalo nem ir à casa de banho para esgalhar o pessegueiro - era ali mesmo. Os castiços dos franceses, toujours en avance...

Já agora: ao contrário do que muito boa gente pensa que sabe, incluindo alguns figurões com alegadas responsabilidades literárias, "Chove em Santiago", célebre verso de abertura de um belíssimo poema de Federico García Lorca, não se refere a Santiago do Chile, mas a Santiago de Compostela. À minha querida Santiago de Compostela, pela qual o poeta e dramaturgo andaluz também se enamorou.
Lorca publicou em 1935 um pequeno livro a que deu o nome de "Seis Poemas Galegos". Em galego o escreveu e o poema mais conhecido do opúsculo é exactamente este:

Madrigal á cibdá de Santiago

Chove en Santiago,
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.
 

Chove en Santiago
na noite escura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.
 
Olla a choiva po-la rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla no vento esvaído,
soma e cinza do teu mar.
 

Soma e cinza do teu mar,
Santiago, lonxe do sol;
ágoa da mañán anterga
trema no meu corazón.
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Outubro de 2013. Entretanto, o Teatro Jordão foi finalmente recuperado e reabilitado, como bem merecia. E foi inaugurado no passado sábado. Ali vão
 funcionar a Escola de Artes Performativas e Artes Visuais da Universidade do Minho e a Escola de Música do Conservatório de Guimarães.

Com vista para a História

Foto Hernâni Von Doellinger

Assim nasceu Portugal

Afonso Henriques, esse gabiru de estilo motoqueiro que gostava de vestir saias e há quem diga que batia na mãe, tinha uma espada que pesava toneladas e não cabia no guarda-vestidos e nem sequer existiu. O espadalhão, entendamo-nos. Já o jovem Afonso ficou na história da moda por ter sido o criador da maxissaia. Morava geralmente no austero Castelo de Guimarães e tinha um anexo charmoso chamado Paço dos Duques onde dava as suas festas que eram sobremaneira constadas. No dia 24 de Junho de 1128, tomai nota, depois de uma dessas iglantónicas farras, noitada de São João ainda por cima, Afonsinho do Condado acordou digamos maldisposto, bebeu um copo de água da mina com bicarbonato, mandou chamar o pessoal e os cavalos e derrotou a progenitora, Dona Teresa de Leão, mailo seu amante galego, Fernão Peres de Trava, na Batalha de São Mamede, levada a efeito ali mesmo nos arredores, para evitar deslocações e despesas, que o País ainda estava a começar.
Isto explica mais ou menos o que ouvi uma vez no Parque da Cidade do PortoFoi apenas um momento, o tempo de nos cruzarmos, mas deu para perceber que a conversa ia animada. De mão dada com a mãe, o miúdo, de seis ou sete anos se tanto, perguntou, cheio de certeza na resposta a vir: - Ó mãe, a Espanha já deve ter sido de Portugal, porque D. Afonso Henriques ganhou a Espanha, não ganhou?...
Já não escutei o que lhe respondeu a mãe, mas deve-lhe ter dito que não, que não é bem assim. E no entanto...

P.S. - Publicado originalmente, versão reduzida, no dia 1 de Novembro de 2015. Guimarães foi elevada à categoria de cidade no dia 19 de Fevereiro de 1853.

Para memória futura

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Apetecia-me bater-lhes...

Fui aí a um sítio que faz o melhor bacalhau assado na brasa de Portugal e, portanto, do mundo. O bacalhauzinho é servido com batata cozida (é claro), coberto com cebola e azeitonas, e generosamente regado com um azeite-e-alho tão extraordinário que só apetece dar banho ao pão. Para cumprir todos os meus cânones, falta-lhe o ovo cozido, é certo, mas esta é uma falha que eu relevo com todo o gosto.
Na mesa ao lado, um jovem casal também estava no bacalhau. Acompanhado por cerveja, uma a dividir pelos dois, logo no berço do alvarinho e do trajadura. Eu ia perdendo o apetite! Mas o pior ainda estava para vir. E veio: uma travessa de batatas fritas, porque as cozidas não lhes serviam - ficaram todas - ou então nunca tal tinham visto.
Ainda pensei desculpá-los. "Está bem, são espanhóis (não consegui sequer considerá-los galegos, era doloroso demais para mim), estes tipos não percebem nada disto". Mas não desculpei. E é preciso que se note que eu sou pela livre escolha. Para mim, cada um come do que gosta. Mas há comportamentos que, por escandalosos, devem ser guardados para o recato do lar. Eu próprio já comi bacalhau assado com feijoada à transmontana, mas foi em casa de amigos. Nunca por nunca o faria em público. Haja decoro! Para além do mais, gastronomicamente falando, a feijoada com o bacalhau na brasa é uma extravagância, enquanto que a batata frita, posto que excelentíssima, não passa de indigência.
Apetecia-me bater-lhes, Deus me perdoe...

P.S. - O sítio que faz o melhor bacalhau assado na brasa de Portugal e, portanto, do mundo é em Valença - e mais não digo. Valença goza hoje o seu feriado municipal, em honra do padroeiro São Teotónio, o primeiro santo português.

À sombra da luz

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O topa-a-tudo

Viu um anúncio a pedir idiotas e lá foi ele. Tinha acabado a universidade e respondia a todos os anúncios.

Pedindo com jeitinho...

Cátia Soraia entrou na universidade e mandou uma mensagem à mãe a pedir um concelho. A mãe, que é rica e boa alma, enviou-lhe Freixo de Espada à Cinta.

P.S. - A comissão instaladora da Universidade do Minho tomou posse no dia 17 de Fevereiro de 1974.

Na outra encarnação (salvo seja!)

Foto Hernâni Von Doellinger

Sete vidas

Cada vez que morria, o gato sabia que era a brincar. Chegou à sétima e fodeu-se!

Gato-sapato

 Faziam dele gato-sapato. Quarenta e dois, biqueira larga.

E as gatas?

Hoje é Dia do Gato. Mas Dia do Gato é todos os dias, é quando o gato quiser. Parabéns, Pantufa! Parabéns, Félix! Parabéns, Tareco! Parabéns, Zé Albino! Quanto às gatas, aguardam uma vigorosa tomada de posição por parte do Bloco de Esquerda, do PAN e das Capazes.

Pardos mas nem tanto

De noite todos os gatos são pardos. Até que alguém acende a luz.

O melhor amigo da mulher

O cão é o melhor amigo do homem. Da mulher, há quem diga que é o gato.

P.S. - Hoje, 17 de Fevereiro, é Dia Mundial do Gato ou Dia Internacional do Gato. Há quem diga que é no dia 8 de Agosto.

As tuas ondas precipitadas

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Saber estar à mesa

Isto devia ser ensinado desde os bancos da escola: o telemóvel ou o tablet não fazem parte do talher e portanto não devem ir à mesa. O talher é composto pelo conjunto de garfo, colher e faca e comando de televisão. Mais nada. 

Os tais canais

Pegou no telecomando e fez um périplo por todos os canais. Oh!, a bela Veneza, deslumbrante e líquida, sem dúvida a Aveiro italiana!...

P.S. - Robert Adler, inventor do telecomando, morreu no dia 15 de Fevereiro de 2007, aos 93 anos.

E hoje é o quê?...

Ontem foi o Dia dos Namorados. E hoje? Com a velocidade a que os tempos correm e mudam as vontades, nunca sei como é que se diz: se hoje é o ex-Dia dos Namorados ou o Dia dos ex-Namorados.

P.S. - Para que conste, hoje é Dia Internacional da Criança com Cancro.

Também faço isto muito bem 565

Foto Hernâni Von Doellinger