sexta-feira, 31 de julho de 2020

Mulher amiga...

Com esta caloraça, a mulher comprou-lhe um pijama de Verão por acaso bastante jeitoso. Chamou-o ao quarto e disse-lhe: - Estás a ver? Gostas? Fica aqui guardadinho para quando fores para o hospital...

A praia era verde

Foto Hernâni Von Doellinger

A poesia o que tem de ser é orgasmo

A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro. Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Julho de 2018, então sob o título "Há palavras que nos beijam como se tivessem boca", segundo Alexandre O'Neill. Desta vez rapinei o título a Ary dos Santos, em "Poesia-orgasmo". O'Neill e Ary, curiosamente ambos publicitários e dois nos meus poetas mais preferidos. Mais preferidos, disse bem! Hoje, 31 de Julho, é Dia Mundial do Orgasmo. Tenham muitos!

Também faço isto muito bem 452

Foto Hernâni Von Doellinger

Camilo Lara 4

eu)
 
lavo as minhas mãos
lavro as minhas mágoas
lavo as minhas larvas
lavro as minhas palavras
lavo as minhas tranças
lavro o meu silêncio
 
levo o meu adeus


Camilo Lara 

(Camilo Lara nasceu no dia 31 de Julho de 1959. Morreu em 2016.)

Music was my first love 71

Foto Hernâni Von Doellinger

Maus hálitos

Tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os testículos...

Anda-me acaçar!...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Dou abraços em segunda mão

Caro Amigo,
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá eu porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.

Paroles, paroles, paroles
Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.  

Devolveram-me o amplexo
O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
E eu pensei: o abraço teria defeito?

Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...


Amigo é a solidão derrotada
Dá-me para isto ultimamente. Pergunto aos meus amigos: - Andas feliz? És feliz? Pergunto-lhes acerca do coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada, da mulher e das namoradas (há quem acumule), dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais, dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos sonhos, da vida. Falamos de bondade, de amor, de compaixão, de vinho. "És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Os meus amigos são poucos e interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Deve ser da idade, ou então da falta de ar no armário, mas eu e os meus amigos andamos cada vez mais abraçadeiros uns com os outros. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa ou o balcão da cozinha, por mor de umas fanecas com arroz de tomate ou de umas bifanas que me trazem quentinhas. E eu sou um felizardo por eles me frequentarem a vida.


P.S. - Textos publicados originalmente no tempo em que havia abraços. Hoje, 30 de Julho, é Dia Internacional da Amizade, por ordem da ONU.

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Foto Hernâni Von Doellinger

Mário Quintana 10

Deixa-me seguir para o mar

Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar-se
um fantasma...
Deixa-me ser o que sou,
o que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão em mim as crianças banhar-se...

Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,

as imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir,

passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
é não poderem parar!

"Baú de Espantos", Mário Quintana

(Mário Quintana nasceu no dia 30 de Julho de 1906. Morreu em 1994.)

Inspiração

Foto Hernâni Von Doellinger

Pastelaria e graças a Deus

Comeu um cardeal, dois jesuítas e três seminaristas. Bebeu quatro taças de Casal Garcia, persignou-se e deu graças a Deus. 

Na minha rua passa o mar 84

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Manjeriquices

Como todos os anos, o meu manjerico de São João foi atacado pela lagarta, dezenas de lagartas sorrateiras e gordas. Como todos os anos, tratei do assunto deitando uma panela de água a ferver sobre o manjerico. Como todos os anos, as lagartas morreram todas. E o manjerico também, como todos os anos. Não percebo...

Up with people

Foto Hernâni Von Doellinger

Schumann, Schuman & Schurman

Robert Schumann foi durante bastantes anos um compositor alemão, famoso sobretudo pela peça "Carnaval. Scènes mignonnes sur quatre notes, Opus 9", para piano, que pode (e deve) ser ouvida um bocadinho aqui. Mais tarde, e depois de ter morrido, Robert deixou de ser alemão, largou a música e o "n" final do apelido, fez-se luxemburguês e ministro dos Negócios Estrangeiros de França. Robert Schuman é considerado um dos "pais da Europa", foi o primeiro presidente daquilo que hoje se chama Parlamento Europeu e, acreditem ou não, está na lista de espera do Vaticano para ser declarado santo.

P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Junho de 2015. E devo fazer notar que no dia 5 de Novembro de 1607 nasceu Anna Maria van Schurman, pintora, poetisa e académica holandesa que, verdade seja dita, não é desta história e acaba de ser aqui metida à pressão. Robert Schumann, o músico, morreu no dia 29 de Julho de 1856, aos 46 anos.

Também faço isto muito bem 450

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 218

Época de incêndios, como manda a lei
Estamos em plena "Época de incêndios", e atenção que não fui eu quem lhe pôs o nome e a agendou para esta altura - foi o Governo, foi Portugal! Portanto estamos na "Época de incêndios", legítima, de papel passado, dentro do prazo, e queriam o quê? Inundações?...

Briefing com ovo a cavalo
O Verão não havia maneira de aparecer, derivado às alterações climáticas, e era uma desgraça de bradar aos céus. De repente, inesperadamente a meio do mês de Julho, o Verão entrou em força, derivado às alterações climáticas, e é uma tragédia que Deus nos livre. Direcção-Geral da Saúde e Protecção Civil deverão sair a qualquer momento com um briefing extra. Para mim, mal passado, se faz favor.

Das cabras sapadoras e das vacas roçadeiras aos engolidores de fogo
Esgotados os meios no terreno, porque exactamente não são inteiros, a Autoridade chamou ao teatro de operações todos os engolidores de fogo disponíveis e dois ou três ilusionistas. 

Pago à cabeça
Era pago à cabeça. Quinze mil euros cada. Serviço limpo, absoluta confidencialidade e discrição.

Mãezinha, acabei de falecer... 
Quando ligou à família a dizer que morreu e que portanto precisava de cinco mil euros para o enterro, lá em casa ninguém se acreditou...

A segunda vinda de Jesus
Atenção: não brinquem com coisas sérias! Se Jesus vem mesmo outra vez, é porque estamos no fim do mundo. Vivos e mortos serão julgados para toda a eternidade, o reino de Deus estender-se-á estrondosamente à Terra, e não consta que haja mais futebol. Para quê, então, gastar tanto dinheiro?...

Voo ali e venho já

Foto Hernâni Von Doellinger

Pastelaria e ordem unida

Comeu três brigadeiros de enfiada. Disse-lhes após, enquanto limpava a boca: - Informem o general que eu para a semana não venho.

terça-feira, 28 de julho de 2020

A basezinha

Foto Hernâni Von Doellinger

O chichi e a discriminação de género

Antigamente as mulheres urinavam de pé. Não vou explicar pormenores, a não ser que me peçam muito, mas urinavam de pé. De pé, como as falecidas árvores da Senhora Dona Palmira Bastos. De pé, como as vítimas da fome. De pé, como os homens em geral. De pé! Homens e mulheres eram iguais. Depois as mulheres resolveram amouchar para o acto e vão aos pares à casa de banho. Hoje em dia as mulheres queixam-se de discriminação de género.

Também faço isto muito bem 449

Foto Hernâni Von Doellinger

Xesús Rodríguez López 5

Os solteirós 

[...]
S'a eles non lles gustaran
as rapazas, craro está,
xa estaba todo espricado;
mais eu puiden reparar
que fuxen eles d'as nenas
cal d'o amo fuxe ó can,
com'a camisa d'o coiro
ou inda menos quizais.
Y-estonces xa que Iles gustan
¿porqué non se casarán?
Si teñen medo âs rapazas
que gastan un capital
en modas y-en perendengues
c-o pertesto d'alternar
con outras mais ricas qu'elas,
ou que solamente o fan
porque son guapas, e queren
á tod'o mundo gustar,
anqu' ô home non-lle guste
tan custosa vanidá,
vexo qu'abundan amiudo
moitas rapazas, que van
afeitas dende pequenas
á andar ó pé de suas mais,
qu'as deprenden á ser boas
privandoas da ociosidá
qu'as fan traballar n'a casa
pra saber dempois mandar,
o qu'a vida d'a familea
d'esta maneira as afan,
pra que s'elas mais adiante
se chegasen á casar
sirvan pra dar gusto ó home
e non pra dar gusto ós mais.

[...]

"Pasaxeiras", Xesús Rodríguez López

(Xesús Rodríguez López nasceu no dia 28 de Julho de 1859. Morreu em 1917.) 

Caminho 822

Foto Hernâni Von Doellinger

O filósofo

Ensinava: o pior da morte é que a vida deixa de fazer sentido.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Numa manhã de

Foto Hernâni Von Doellinger

O retrato de Salazar

Tive a sorte de conhecer a Senhora Dona Laura Summavielle mãe (1879-1971), uma mulher extraordinária que viveu uma vida muito à frente do seu tempo. Tal como eu a via do alto dos meus oito, nove anos, a matriarca da ínclita geração dos Summavielles era então uma velhinha toda guicha, franzina e pândega. No tempo da ditadura fascista, a  notável senhora tinha uma curiosa brincadeira que apelava à interacção de Fafe inteiro que lhe passasse por baixo da comprida sacada da casa da família, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Cinema. Fosse quem fosse. Eu também não escapei à partida, mais do que uma vez, e com muito gosto.
Comigo era assim: mal me via aproximar, a marota da Senhora Dona Laura, de lá de cima, dizia num falsete altivo porém educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que me caiu sem querer..
E eu lá apanhava. E era o quê? A fotografia mesmo do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que havia naquela altura e que não sei se ainda existem, para além do que eu guardo cá em casa. Exactamente: afinal o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuidem que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro. 



P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2011. António de Oliveira Salazar morreu no dia 27 de Julho de 1970.

Ataque à bomba

Disse que ia atacar à bomba, e foi. Anos e anos a fio. Dental. Hoje a bomba é a estação de metro da Trindade e ele era travesti.

Caminho 821

Foto Hernâni Von Doellinger

Salvador Golpe 6

N-un abanico

Teño que escribir uns versos,
sexa de calquer maneira,
no abanico d' unha amiga
que teño na miña aldea.

Ela é unha nena garrida,
moi xeitosa, moi ben feita,
que ten estrelas por ollos
e arreboles na meixelas.

E fresca como unhas rosas
que a brisa d' Abril randea,
y é pura como esa brisa,
e pol-o sol é morena.

E ademais de todo, e boa,
y o decir boa na terra
ten un título mais grande
que se fora unha princesa.

"A Nosa Terra", Salvador Golpe

(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)

I want to ride my bicycle 104

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 26 de julho de 2020

A Bó era uma santa, mas disfarçava muito bem

A minha avó de Basto tinha uma sociedade infalível com São Bento da Porta Aberta. Em questões de pele e outras coisas ruins, os dois juntos eram uma limpeza.
Aí pelos meus vintes, eu tinha uma plantação de cravos no braço direito, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia pessoalmente, a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. Os cravos desapareceram.
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da Bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e pequerricha, ia a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar: por exemplo, convencer-nos de que João Paulo II é santo. Vai levar anos, e eu não acredito.

P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Maio de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós. 

Interlúdio fotográfico 259

Foto Hernâni Von Doellinger

O último dos Bernardinos

Já sabem, eu não posso ver na rua bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. (Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas?) Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.

Music was my first love 70

Foto Hernâni Von Doellinger

A bó, o bô e o bu

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Vezes dois, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos. Bô queria também dizer bom: binho bô; bô moço. Depois, se calhar por soar a parolo, bô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Quem caralho teve a ideia?...

P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Julho de 2013. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.

Cão licença...

Foto Hernâni Von Doellinger

O sempre às vezes é um bocado nunca

O amor é infinito enquanto dura, dizia o poetinha Vinicius de Moraes. Outro artista do mesmo quilate, Salvador Martinha, deverá actuar em Fafe no dia 9 de Novembro próximo. A Câmara de Fafe, no seu sítio oficial, apresenta Salvador Martinha como "um dos maiores humoristas portugueses de sempre". E tem piada. A rapaziada do sítio oficial da Câmara de Fafe mede o sempre pela própria idade e acha que tem a ver com o gosto pessoal, não sabe que o sempre é mais antigo e de todos, que não começou com a televisão, com a SIC ou com a TVI. E ainda que tivesse começado...

Já agora, uma pitadinha das minhas Lições de História: o sempre começou, consoante as crenças de cada qual, com Adão e Eva da Bíblia ou com os macacos do 2001: Odisseia no Espaço. Persiste evidentemente um sempre anterior, perene, mas esse não se sabe, era Deus sozinho e não há registos. Para os portugueses o sempre começou pelo menos com Afonso Henriques, esse gabiru que vestia saias e batia na mãe. Um cómico! E depois sucederam-lhe Gil Vicente, Bocage, Rafael Bordalo Pinheiro, Vasco Santana, Parodiantes de Lisboa, José Vilhena, Raul Solnado, evidentemente Herman José e Ricardo Araújo Pereira, mais mil e quinhentos estandapers extraordinários e famosíssimos que eu desconheço, e sobretudo António Augusto Ferreira (pai do jornalista Carlos Rui Abreu), que todos os dias trazia anedotas frescas de Guimarães e, quiséssemos ou não, contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois ia para a Póvoa.

Para terem uma ideia de como o sempre é tão relativo, tomem conta desta: o Tónio Augusto jogava nos juniores da AD Fafe, no Campo da Granja, e uma vez rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de bêbados matinais. Era de rir. O Tónio Augusto tinha muito mais piada do que o Salvador Martinha, com todo o respeito. O que faz dele, do nosso Tónio Augusto, um dos maiores maiores humoristas portugueses de sempre...

P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Setembro de 2018. No dia 26 de Julho de 1928 nasceu Stanley Kubrick, realizador de 2001: Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, The Shining, Nascido para Matar, Dr. Estranhoamor e até do meu Spartacus, entre outras obras talvez um pouco menos primas.

Também faço isto muito bem 448

Foto Hernâni Von Doellinger

Cassiano Ricardo 6

A rua

Bem sei que, muitas vezes,
o único remédio
é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
a dívida, o divertimento,
o pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
de contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.

A esperança
nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da espera.

Nunca é a figura de mulher
do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.


"Um Dia Depois do Outro", Cassiano Ricardo

(Cassiano Ricardo nasceu no dia 26 de Julho de 1895. Morreu em 1974.)

Verde que te quero... coisa

Foto Hernâni Von Doellinger

Grávidas de gémeos

As grávidas de gémeos dão à luz entre 21 de Maio e 20 de Junho.

sábado, 25 de julho de 2020

Na minha rua passa o mar 83

Foto Hernâni Von Doellinger

Joie de vivre

Sabem aqueles indivíduos que têm a certeza de que, mais hora menos hora, lhes vai acontecer uma desgraça qualquer, um furo ou um cancro, por exemplo, e que por isso andam sempre com o credo na boca e o colete reflector vestido? Ele não era desses. Viveu descansado e feliz até aos 123 anos, e só se queixou uma vez, mesmo antes do último suspiro: - Agora que me sentia tão bem...

Também faço isto muito bem 447

Foto Hernâni Von Doellinger

Ternura, de Vinicius de Moraes

Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.


Vinicius de Moraes

(Hoje, 25 de Julho, o Brasil celebra o Dia Nacional do Escritor, chamado também Dia do Escritor Brasileiro)

Caminho 820

Foto Hernâni Von Doellinger

Día da Patria Galega 2020

A Galiza no peito

Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
a areia quente do Brasil,
a rosa de Portugal.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
a máscara mágica de Angola,
o Índico azul de Moçambique.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
o branco arroz de Macau,
as espécies perfumadas de Goa.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
as belas ilhas aligato,
a cálida selva de Timor.
Levo a Galiza no peito,
o Atlântico africano,
as estrelas de Cabo Verde,
a lua da Guiné-Bissau.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário
de longas raízes,
perdidas no infinito
do mar e da terra. 

Manuel Meixide Fernandes

(Hoje, 25 de Julho, é Día Nacional de Galicia, também conhecido popularmente como Día Nacional da Galiza ou Día da Patria Galega)

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Ó prima, ó rica prima!

Foto Tarrenego!

Eu tinha umas primas de que não sabia. Foram-me apresentadas há coisa de dois ou três anos pelo meu amigo Paulo Silva, que as conhecia de ginjeira, e desde então não lhes largo as redondezas. Falei nelas no outro dia, disse ao Paulo que havíamos de ir às minhas primas e logo mentes perversas pensaram que eu estava a agendar uma noitada na casa da tia, melhor dizendo: em casa de tia. Mas nada disso. As primas de Leça do Balio são as Erdinger, as excelentíssimas cervejas alemãs que, como o seu próprio nome indica, são praticamente da minha família. E preciso urgentemente de fazer uma festa de despedida.
As Erdinger são infelizmente uma raridade nas prateleiras dos hipermercados. Descubro muito às vezes meia dúzia delas, e vêm logo todas comigo para casa. Mas há um certo sítio, uma esplanada num certo parque junto ao ex-rio mais poluído da Europa, onde costumo marcar encontro com elas e elas não costumam falhar. Parece traição à Pátria, mas é exactamente em Leça do Balio, o berço desse verdadeiro monumento nacional e património material da humanidade que é a Super Bock.
Para beber a Erdinger em casa como manda o figurino, até tive de comprar um copo, caro, enorme, bojudo e cheio de curvas, e é destas redondezas que eu falo. Estou a pensar vendê-lo, ao copo. As minhas primas que me perdoem, mas começam a estar muito acima das minhas posses. E não é que volte para os braços da Super Bock, não. Vou mesmo para a água, e da torneira, pelo menos enquanto não a vierem cá cortar. Portanto, adeus ó primas, ó ricas primas! 

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Dezembro de 2011. Já há anos, seis ou sete, que não vou a casa das primas, ricas primas, e as raparigas, há quem me conte para fazer raiva, continuam boas como o trigo. Estou farto de dizer à minha mulher: a família devia dar-se mais! Hoje, 24 de Julho, é Dia dos Primos, e lembrei-me delas...

Também faço isto muito bem 446

Foto Hernâni Von Doellinger

Solano Trindade 4

Eu gosto de ler gostando

Eu gosto de ler gostando,
gozando a poesia,
como se ela fosse
uma boa camarada,
dessas que beijam a gente
gostando de ser beijada.


Eu gosto de ler gostando
gozando assim o poema,
como se ele fosse
boca de mulher pura
simples boa libertada
boca de mulher que pensa...
dessas que a gente gosta
gostando de ser gostada.


Solano Trindade 

(Solano Trindade nasceu no dia 24 de Julho de 1908. Morreu em 1974.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 187

Foto Hernâni Von Doellinger

Guilherme de Almeida 6

Cinema

Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.

Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.

E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são,
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.

Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.

E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
- são bandidos e heróis;

são lágrimas e risos;
são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...

É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...


"Encantamento", Guilherme de Almeida

(Guilherme de Almeida nasceu no dia 24 de Julho de 1890. Morreu em 1969.)

Vida de cão 511

Foto Hernâni Von Doellinger

Víctor Campio Pereira 2

Lección de Historia

Zai, o fillo de Cronos e de Xea,
nacido a contraparto
de amor, contra natura,

Zai, o xénito espurio,
o desherdado,
criado a biberón con leite en po
de aldraxes e inxustizas,

Zai, o irmán estragado,
o triste,
o ilota,
o paria,

medrou a golpe humano, alzado en odio,
medrou, medrou, medrou...Multiplicouse
por mares e por ceos e fronteiras,
chegou ás frías terras do Solpor
e prantou con asaño unha flor negra
na alta Babel do mundo.

Agora Xea e Cronos
locen no corazón, aterrecidos,
un caravel de sangue
medrado a golpe humano de ardua historia.


Víctor Campio Pereira 

(Víctor Campio Pereira nasceu no dia 15 de Julho de 1928. Morreu no dia 24 de Julho de 2018.)

Caminho 819

Foto Hernâni Von Doellinger

Eladio Rodríguez González 4

Malpocado!

[...] 
¡Probe vello sin arrimo!                     
¡Probe pidincheiro errante!
Engoumado pol-os anos i-engurrado pol-as penas                     
é talmente a propia imaxe                     
da miseria que se axunta
cos delores e coa fame.
Cando alguén lle dá unha esmola de pantrigo e de compango
queda sempre o malpocado satisfeito de verdade.                     
Anda un día i-outro día,
paseniño e sin cansarse,
coa falchoca postaô lombo, camiñando pra ningures,
sempre ô achou, sin rumbo fixo, sempre cara á todas partes.
Pol-o vrau sofre o calmizo d'ese solque mesmo abafa                     
e que troca en fogo o aire;                     
sol de vrau, lume de incendio                     
que nos campos parés que arde.
Pol-o inverno, caia neve, brúe o vento ou o corisco,
chova ou xíe, él non fai caso dos rigores do friaxe.
[...]
"Oraciós Campesiñas", Eladio Rodríguez González

(Eladio Rodríguez González nasceu no dia 24 de Julho de 1864. Morreu em 1949.)

Offshore, se fashavore 262

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Sismando

Ao contrário do que o próprio nome indica, o Happy Centro é um sítio deveras perigoso.

A visita da Veneranda Figura

Foto Tarrenego!

As visitas da Veneranda Figura ao Portugal corno manso eram, não raro, momentos de alto fervor nacionalista e profunda reflexão cultural. Sua Excelência o Senhor Presidente da República - ou O Padeiro, na versão abreviada - tinha o condão da palavra certa. Humanista dos sete costados, enciclopedista dado a calendário, geografia e contas de somar, Américo Tomás abria a boca para espirrar e saíam-lhe pérolas, orações de sapiência. Num país de troca-tintas e fala-barato de nascimento, o rigor e o donaire na afirmação são a superlativa herança que o marido de Dona Gertrudes fez o obséquio de nos deixar.
Por exemplos:
1. "Hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei."
2. "É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque, estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude."
3. "Comemora-se hoje em todo o país uma promulgação do despacho número cem, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados."
4. "Neste almoço ouvi vários discursos, que o governador civil intitulou de simples brindes. Peço desculpa, mas foram autênticos discursos."
5. "Eu prolongo no tempo esse anseio de Vossa Excelência e permito-me dizer que o meu anseio é maior ainda. Ele consiste em que, mesmo para além da morte, nós possamos viver eternamente na terra portuguesa, porque se nós, para além da morte vivermos sempre sobre a terra portuguesa, isso significa que Portugal será eterno, como eterno é o sono da morte."
6. "Hoje tivemos um dia sumamente positivo: de manhã assistimos à santa missa e de tarde inaugurámos o monumento ao bombeiro."
7. "Pedi desculpa ao Senhor Engenheiro Machado Vaz por fazer essa rectificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Senhor Engenheiro Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Senhor Engenheiro Machado Vaz."
8. "A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance."
 9. "O Senhor Professor Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do País, e, desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos."
10. "Esta é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive."

Convivi pessoalmente a uma distância razoável com Américo Tomás. Uma vez. Quando a Veneranda Figura foi a Fafe, num esplêndido Rolls-Royce descapotável negro como era a vida e guardado por uma matilha de impressionantes motos da GNR. Foi inaugurar por atacado a "nova" Câmara Municipal, o Tribunal, que tinha sido cadeia, e a escola do Santo Velho - estaríamos, se não me engano, nos finais da década de mil novecentos e sessenta. E decerto O Mais Alto Magistrado da Nação por lá deixou algumas das suas proverbiais patacoadas, mas não tenho a certeza: eu teria onze anos porém já não lhe botava sentido. Preferia fazer pouco dele, O Padeiro, e a moçarada à minha volta, agitando impostas bandeirinhas nacionais presas por arames e muitos Viva o Senhor Presidente da República!, escangalhava-se a rir, conferindo enfim ao acto o significado (ou a in-dignidade) que realmente lhe assistia.
Tomás era o circo e mais nada. O Presidente da República nunca encontrou palavras de jeito para falar ao Portugal dos pequeninos. Ele não as sabia e ninguém lhas ensinou ou escreveu.
 
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Julho de 2013. Depois da queda do regime e de quatro anos de exílio no Brasil, Américo Tomás, o último Presidente da República na ditadura do velho Estado Novo, regressou a Portugal no dia 23 de Julho de 1978.

Desejo

Foto Hernâni Von Doellinger

Chagas Val 4

As formas em movimento

Primeiramente as coisas em que se tocam ásperas
as paisagens reais as árvores as pedras as peças
com dimensões exatas os ângulos e as linhas retas

depois as curvas as formas arredondadas um seio,
por exemplo, um corpo de mulher as róseas nádegas
um ovo construído alvo e limpo num círculo iluminado
real uma lâmpada e as sinuosas ondas das dunas

e finalmente os cursos movimentos das águas e dos
ventos esses pontos fugidios dos líquidos elementos
os mares e os rios os ares e os voos de pássaros 

"Anatomia do Escasso Cotidiano", Chagas Val

(Chagas Val nasceu no dia 23 de Julho de 1943. Morreu em 2016.)

Vidas... 10

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A segunda vinda de Jesus

Atenção: não brinquem com coisas sérias! Se Jesus vem mesmo outra vez, é porque estamos no fim do mundo. Vivos e mortos serão julgados para toda a eternidade, o reino de Deus estender-se-á estrondosamente à Terra, e não consta que haja mais futebol. Para quê, então, gastar tanto dinheiro?...

I want to ride my bicycle 103

Foto Hernâni Von Doellinger

Uns foram à bola, Durão Barroso ia de férias

A propósito da cretinice dos secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp, no Euro 2016 de tão boa memória, lembrei-me do multinacional lobista Durão Barroso. José Manuel era primeiro-ministro de Portugal, em 2002, e foi no jacto privado de Pereira Coutinho passar férias na ilha privada brasileira do recatado multimilionário português. Três anos depois, o nosso Zé Manel já tinha sido nomeado presidente da Comissão Europeia e passou férias num barco privado de um milionário grego.
Conclusões que tirei desta oportuníssima lembrança: Durão Barroso gosta de férias; Durão Barroso gosta de férias à grande e à brasileira ou à grega, pelo menos; Durão Barroso não gosta de pagar as férias à grande e à brasileira e à grega, pelo menos; Durão Barroso não paga férias desde os tempos imemoriais em que ia para a chique praia de Moledo, em Caminha, como as pessoas normais porém chiques, e se calhar nem essas pagava, porque parece que eram passadas em casa de amigos; Durão Barroso gosta de milionários e de multimilionários; Durão Barroso gosta muito de privados - aviões, ilhas, barcos e talvez bancos; por causa de Durão Barroso e de outros que querem ser durões barrosos quando forem grandes, o PSD mexe com pinças na valente cagada que os secretários de Estado do Governo PS fizeram; os invejosos do CDS esperneiam e esperneiam, mas apenas porque ninguém os convida para lado nenhum e eles também gostam de andar de cu tremido; é inacreditável que os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp ainda sejam secretários de Estado.

(O prestígio internacional de Durão Barroso não era realmente coisa de se deitar fora. Lembram-se? José Ramos-Horta (ex-presidente de Timor-Leste e co-Nobel da Paz com Dom Ximenes Belo em 1996) lançou a candidatura do nosso Zé Manel ao mesmo prémio em 2008. E deu em águas de bacalhau! Quatro anos depois, o ilustríssimo galardão foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: ao Barroso só faltou um bocadinho assim...)

Fino era o Paulo Portas: para que não se lhe possa apontar nada, ele é que oferecia viagens aos seus futuros patrões. Em quatro anos, o então vice-primeiro-ministro e ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros levou a Mota-Engil seis vezes à América Latina. Hoje Portas é consultor da Mota-Engil para a... América Latina. Durão Barroso está na Goldman Sachs. Diz que é charmain...

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2016. Com quase um ano de atraso, em Julho de 2017, os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp acabaram por demitir-se. Rocha Andrade, que nos pôs as contas em dia, se calhar faz falta. Quanto a Pereira Coutinho, que já foi o quinto mais rico de Portugal, vendeu o jacto, o helicóptero e a ilha em Angra dos Reis (trindade ostentatória que Barroso conhecia de ginjeira e de borla), perdeu e desfez-se de negócios, faliu ou insolveu-se, sobrevive, sei lá, à pala da Segurança Social e um destes dias ainda o vou descobrir por aí sem-abrigo. José Manuel Durão Barroso, esse, foi eleito presidente da Comissão Europeia no dia 22 de Julho de 2004. Faz hoje anos. E parabéns à prima!...

Também faço isto muito bem 445

Foto Hernâni Von Doellinger

Lara de Lemos 4

Poema de múltipla escolha - faça seu poema

Em que tempo vivo
em que hora? de aço ( )
de água ( )
de mágoa ( )
de arma ( )

em que tempo vivo
em que hora? de faca ( )
de ferro ( )
de fúria ( )
de fuga ( )

em que tempo vivo
em que hora? de canto ( )
castigo ( )
cegueira ( )
cadeia ( )

em que tempo vivo
em que hora? de teia ( )
de muro ( )
de usura ( )
de guerra ( )


"Aura Amara", Lara de Lemos 

(Lara de Lemos nasceu no dia 22 de Julho de 1923. Morreu em 2010.)

Prò menino e prà menina

Foto Hernâni Von Doellinger

Enrique Labarta Pose 4

[...]
Dás mamorias que removo
d'a infancia, viva en min resta
máis que todas, a d'a festa
d'a Patrona d'o meu povo.
¡Ay, n-é estraño que me lembre
n-a miña vida azorosa,
con amor santo d'a Nosa
Señoriña de Setembre!
Sin apartarse de min,
sua imaxe comigo vai,
¡que n-o colo d'unha nai
á querela deprendin!
[...]

"A Festa da Patrona de Tabeirón", Enrique Labarta Pose 

(Enrique Labarta Pose nasceu no dia 22 de Julho de 1863. Morreu em 1925.)

Distanciamento social

Foto Hernâni Von Doellinger

Antonio Bieito Fandiño 4

[...]
Por min fai o que quixêres;
a ama do crego ten:
que se o ganou mal, ou ben,
no-o deben decir mulleres.

Teu pai está por medrar;
a tí pouco che debin,
cando sin decirmo a min
te foches a concertar.
O termo hastra aqui encuberto
foi unha gran picardía;
e o decir que no-o sabías,
eso, Perucho, n'he certo.
Quíxênche moito, e engañéime,
servirame d'escarmento,
que para divertimento
bastou; arrepentireime.
[...]

"A Casamenteira", Antonio Bieito Fandiño

(Antonio Bieito Fandiño nasceu no dia 22 de Julho de 1779)

Vida de cão & etc.

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 21 de julho de 2020

Quando eu era Hemingway (ou O Amigo Bastos)

Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: à sua beira, foi o que disse? Que expressão tão bonita! À sua beira...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical...

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e "simpatizantes", de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2018. O aventureiro e escritor norte-americano Ernest Hemingway, autor de "Por Quem os Sinos Dobram" e "Adeus às Armas", Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e Prémio Nobel da Literatura em 1954, nasceu no dia 21 de Julho de 1899.

Interlúdio fotográfico 258

Foto Hernâni Von Doellinger

Pago à cabeça

Era pago à cabeça. Quinze mil euros cada. Serviço limpo, absoluta confidencialidade e discrição.

Os despojos do dia

Foto Hernâni Von Doellinger

Luz Pozo Garza 5

Cantiga para ler en tempo de penumbra 

Axiña pasa o tempo da total transparencia
as verbas que deslizan un tránsito de soles
ondas do mar levado
unhas mans que circundan
coma un stradivarius os labios e a cintura
nese momento a sombra perdeuse para sempre:
E ai Deus se virá cedo!

Qué axiña no sagrado as sucesivas voces
os corpos que resumen a vesperal caricia
que nunca houbera amigo
nen perseguir o reino das noites fuxidías
nen respirar a pausa que chamamos amor:

E ai Deus se virá cedo!

A rotación da chuvia persiste na memoria
e percibimos lonxe un hálito sombrizo
se vistes meu amado
quizáis volver os ollos nunha implícita entrega
os cabelos a boca a cintura que xeme:

E ai Deus se virá cedo!

Cae unha folla intacta coma laio
talvez volver os ollos a contemplar o tempo
bailar corpo belido
no centro da mudanza onde o mar é levado
e non saber a forma precisa da demora:

E ai Deus se virá cedo!

Dormir soñar morrer acaso
agardar un encontro para se tornar caricia
e bañarse nas ondas
nas mesmas vivas aguas da existencia
sílabas delicadas ausencias repentinas
a se perder no reino do lamento:

E ai Deus se virá cedo!

"Códice Calixtino", Luz Pozo Garza

(Luz Pozo Garza nasceu no dia 21 de Julho de 1922. Morreu no passado dia 20 de Abril.)

Para todo o serviço

Foto Hernâni Von Doellinger

Acede-o

- Se eu fosse a ti...
- Não vens, não!

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Suíte de luxo à beira-mar

Foto Hernâni Von Doellinger

Rabichas, foguetes e foguetões

Não sei se se lembram: Eurico da Fonseca (1921-2000) foi o principal especialista português em astronáutica. Praticamente autodidacta, nomeado investigador por decreto-lei e oficialmente equiparado a professor catedrático, colaborou com a NASA e conheceu os principais responsáveis pelo Programa Apollo. Notabilizou-se, entre nós, como divulgador de assuntos científicos. Na rádio, acompanhou em directo, na então Emissora Nacional, a chegada do homem à Lua, há exactamente cinquenta e um anos, e comentou os voos espaciais norte-americanos e soviéticos. Mas era na RTP que eu gostava de o ouver. Ouver, escrevi bem.
Pois foi com Eurico da Fonseca na televisão que eu aprendi que, quando se fala de um lançador espacial, deve dizer-se foguete e não foguetão. Foguete. Tal como na meia de vidro com fio puxado. Foguete. Tal como no Santo António da minha rua em Fafe, com girândolas, diabos-encaixados, bombinhas, estalinhos e bichas-de-rabear, ou rabichas, como por lá se chamavam. Foguete. Eurico da Fonseca explicava, apenas insinuando, que foguetão é outra coisa: por exemplo coisa gasosa, eventualmente sonora e por norma fedorenta. Quer-se dizer: um peido, com vossa licença...

P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Abril de 2012. O homem chegou à Lua no dia 20 de Julho de 1969. O astronauta norte-americano Neil Armstrong caminhou, ou saltitou, no solo lunar, seguido de Edwin Aldrin.

Também faço isto muito bem 444

Foto Hernâni Von Doellinger

O último comunicador

A minha missinha das oito é ouvir o Prof. José Hermano Saraiva a contar histórias na RTP Memória. Já o sei de cor como ao padre-nosso, mas gosto de o ter ali, exactamente ali, a servir de música de fundo ao meu jantar. Aqui que ninguém nos ouve, o homem tem tanto de historiador como eu de monge tibetano, o que lhe dá ainda mais valor: porque não há quem invente História tão bem como ele, não há quem estraçalhe com tanto panache tudo o que os verdadeiros especialistas escreveram com rigor, substituindo-o num estalar de dedos pelos seus próprios supores, e não há quem depois diga tudo o que acha com tanta graça, com tanta clareza, com um português tão perfeito e tão acessível e com tanta convicção. José Hermano Saraiva é único. Ele é o comunicador.
O professor sabe compor os "factos" como ninguém, sabe pintar a "realidade", consegue fazer com que a sua História seja sempre melhor e mais bonita do que aquilo que de facto se passou. E é cativante a contar. Vende bem. Muitas vezes não é verdade o que ele diz, mas podia ter sido, e a sua versão é sempre muito mais interessante do que a verdade ela mesma. Quase que se poderia dizer que, inadvertidamente, José Hermano Saraiva foi o inventor do moderno jornalismo português.

Ministro da Educação de Salazar, José Hermano Saraiva esteve no centro do vulcão que foi a crise académica de 1969. Figura polémica, criticado nos meios intelectuais e políticos, o professor ganhou o coração de sucessivas gerações de portugueses através dos programas que faz para a RTP. Penso, porém, que o fantasma do seu passado fascista às vezes ainda o incomoda. Num episódio onde revisitava os retratos dos vários presidentes da República, no Palácio de Belém, o professor deixou cair um curioso comentário sobre Canto e Castro, creio, que era monárquico convicto e assumido, que foi mesmo deputado no tempo da monarquia (eu percebi "ministro"), mas que ocupou depois, ainda que por pouco tempo, o cargo de chefe de Estado no novo Portugal republicano. "Fez a transição com elegância...", concluiu José Hermano Saraiva, e foi óbvio para mim que ele estava era a falar de si próprio, aproveitando para meter a ficha, como quem não quer a coisa, em mais um pouco de Omo.

José Hermano Saraiva foi considerado, sem favor, uma das "dez caras mais emblemáticas da RTP", num ranking que há uma dúzia de anos elaborei para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas. O humorista Nilton dizia-me então que "nem o Google sabia tanto de História". Saraiva era um fenómeno de popularidade em Portugal e em todo o mundo onde se falasse e ouvisse português. Os seus programas na RTP - O Tempo e a Alma, A Alma e a Gente e Horizontes da Memória - foram anos a fio o menos e o mais que muito e bom povo aprendeu da história de Portugal.
Jurista de formação e historiador por vocação, antigo embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva era personalidade sem consenso sobretudo ao nível das chamadas elites pensantes. Os que não gostavam dele criticavam-lhe uma certa visão fantasista da História e o facto de não possuir qualquer grau académico superior nesta área do saber. Os seus defensores preferiam enfatizar as suas inegáveis capacidades de comunicador e de divulgador cultural junto das camadas menos instruídas da população. Alheio a estas guerras do alecrim e da manjerona, Saraiva continuava a ser uma presença assídua, entusiasta e apreciada na TV.

Comecei por dizer que gosto de ouvir o professor na RTP Memória. Ali, onde ele é ainda um jovem de 80 anos cheio de genica. Incomoda-me ver os seus novos episódios na RTP 2. Não consigo. Não lhe deviam fazer isto. Não o deviam deixar fazer isto.
José Hermano Saraiva tem 92 anos e continua na TV. É uma boa notícia em absoluto, apesar dos meus incómodos, que para o caso são irrelevantes. Hoje como ontem, novas gerações poderiam continuar a aprender com ele, se não História a sério, pelo menos a falar bom português e a respeitar e a amar o nosso património. Mas era preciso que se percebesse o que o homem diz naqueles monólogos inenarráveis!
Já não há Vitorino Nemésio, lembram-se? E acreditem no que eu digo: isto, sim, são comunicadores. O resto são habilidosos, meros entertainers. No dia em que José Hermano Saraiva, não o de agora, sair de vez dos ecrãs, acabou o que era bom. Destes já não há mais!

P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Outubro de 2011. José Hermano Saraiva morreu no dia 20 de Julho de 2012.