A minha missinha das oito é ouvir o Prof. José Hermano Saraiva a  contar histórias na RTP Memória. Já o sei de cor como ao padre-nosso,  mas gosto de o ter ali, exactamente ali, a servir de música de fundo ao  meu jantar. Aqui que ninguém nos ouve, o homem tem tanto de historiador como eu  de monge tibetano, o que lhe dá ainda mais valor: porque não há quem  invente História tão bem como ele, não há quem estraçalhe com tanto panache tudo o que os verdadeiros especialistas escreveram com rigor,  substituindo-o num estalar de dedos pelos seus próprios supores, e não  há quem depois diga tudo o que acha com tanta graça, com tanta clareza,  com um português tão perfeito e tão acessível e com tanta convicção.  José Hermano Saraiva é único. Ele é o comunicador.
 O professor  sabe compor os "factos" como ninguém, sabe pintar a "realidade",  consegue fazer com que a sua História seja sempre melhor e mais bonita  do que aquilo que de facto se passou. E é cativante a contar. Vende bem. Muitas vezes não é verdade o que ele diz, mas podia ter sido, e a sua  versão é sempre muito mais interessante do que a verdade ela mesma.  Quase que se poderia dizer que, inadvertidamente, José Hermano Saraiva  foi o inventor do moderno jornalismo português.
 Ministro da Educação de Salazar, José Hermano Saraiva esteve no centro do vulcão que foi a crise académica de 1969. Figura polémica, criticado nos meios intelectuais e políticos, o professor ganhou o coração de sucessivas  gerações de portugueses através dos programas que faz para a RTP. Penso, porém, que o fantasma do seu passado fascista às vezes ainda o  incomoda. Num episódio onde revisitava os retratos dos vários  presidentes da República, no Palácio de Belém, o professor deixou cair  um curioso comentário sobre Canto e Castro, creio, que era monárquico  convicto e assumido, que foi mesmo deputado no tempo da monarquia (eu  percebi "ministro"), mas que ocupou depois, ainda que por pouco tempo, o cargo de chefe de Estado no novo Portugal republicano. "Fez a transição com elegância...", concluiu José Hermano Saraiva, e foi óbvio para mim  que ele estava era a falar de si próprio, aproveitando para meter a  ficha, como quem não quer a coisa, em mais um pouco de Omo.
 José Hermano Saraiva foi considerado, sem favor, uma das "dez caras mais emblemáticas da RTP", num ranking que há uma dúzia de anos elaborei para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas. O humorista Nilton dizia-me então que "nem o Google sabia tanto de História". Saraiva era um fenómeno de popularidade em Portugal e em todo o mundo onde se falasse e ouvisse português. Os seus programas na RTP - O Tempo e a Alma, A Alma e a Gente e Horizontes da Memória - foram anos a fio o menos e o mais que muito e bom povo aprendeu da história de Portugal.
 Jurista de formação e historiador por vocação, antigo embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva era personalidade sem consenso sobretudo ao nível das chamadas elites pensantes. Os que não gostavam dele criticavam-lhe uma certa visão fantasista da História e o facto de não possuir qualquer grau académico superior nesta área do saber. Os seus defensores preferiam enfatizar as suas inegáveis capacidades de comunicador e de divulgador cultural junto das camadas menos instruídas da população. Alheio a estas guerras do alecrim e da manjerona, Saraiva continuava a ser uma presença assídua, entusiasta e apreciada na TV.
 Comecei por dizer que gosto de ouvir o professor na RTP Memória. Ali, onde ele é ainda um jovem de 80 anos cheio de genica. Incomoda-me ver os seus  novos episódios na RTP 2. Não consigo. Não lhe deviam fazer isto. Não o  deviam deixar fazer isto.
 José Hermano Saraiva tem 92 anos e  continua na TV. É uma boa notícia em absoluto, apesar dos meus  incómodos, que para o caso são irrelevantes. Hoje como ontem, novas  gerações poderiam continuar a aprender com ele, se não História a sério, pelo menos a falar bom português e a respeitar e a amar o nosso  património. Mas era preciso que se percebesse o que o homem diz naqueles monólogos inenarráveis!
 Já não há Vitorino Nemésio, lembram-se? E acreditem no que eu digo: isto, sim, são comunicadores. O resto são  habilidosos, meros entertainers. No dia em que José Hermano Saraiva, não o de agora, sair de vez dos ecrãs, acabou o que era bom. Destes já não há mais!
P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Outubro de 2011. José Hermano Saraiva morreu no dia 20 de Julho de 2012. 
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