Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido  exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos  habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço,  as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer"  milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o  Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser  ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse  onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas,  que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos  conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no  ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do  desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de  extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam  por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e  entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu  queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava  abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda,  onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me  corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, descendo no nosso vagar a Rua  Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha  Terceira.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num  turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à  sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista,  não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou  Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa,  chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso  raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o  apelido. (Quer-se dizer: AB.) E creio que percebi bem.
- Mas oiça lá: à sua beira, foi o que disse? Que expressão tão bonita! À sua beira...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical...
Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia.  Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano,  do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de  jornais, de jornalistas e "simpatizantes", de tertúlias, da boémia, da  noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de  Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de  Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de  mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os  jornalistas se tratam por tu e são camaradas, porque colegas são as  putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu  sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.
Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez  questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito  bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu  excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um  recadinho escrito ali na hora, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que  copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e  escrever todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.
P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2018. O aventureiro e escritor norte-americano Ernest Hemingway, autor de "Por Quem os Sinos Dobram" e "Adeus às Armas", Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e Prémio Nobel da Literatura em 1954, nasceu no dia 21 de Julho de 1899.
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